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12 de dezembro de 2020
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10:52

Prefeitura tem até o fim do mês para concluir pagamentos da Lei Aldir Blanc em socorro da classe artística

Por
Andressa Marques
andressamarques@sul21.com.br
Bailarina e professora de dança, Rita Guerra diz que o recurso da lei é importante para sua subsistência na atividade artística. Foto: Arquivo pessoal

Andressa Marques e Luciano Velleda

Morador da Lomba do Pinheiro, o rapper Gangster, de 36 anos, iniciou sua trajetória na cultura hip hop em 2003 e tem dois álbuns lançados. “Eu já vinha cantando na escola desde os meus oito anos, aí uma professora me colocou para cantar no show de talentos e disse que eu tinha voz. E aí isso foi crescendo”, recorda. “Montei uma banda de pagode que se chamava Grupo Qualidade, depois fui escrever uma música de samba que acabou ficando muito rimado e me disseram que era um rap. E aí eu corri atrás disso.”

Professora de dança, bailarina, diretora e coreógrafa, Rita Guerra tem 44 anos e iniciou na vida artística aos três, aos 14 estava na dança contemporânea e aos 16 se profissionalizou no ballet clássico. “O que eu poderia fazer de melhor na dança era ensinar, porque era um lugar onde a gente podia construir. Então me encontrei nesse lugar de ser professora de dança”, explica.

Por ser filho de artesão, Leo Francisco Leszczynski, de 60 anos, sempre foi ligado ao artesanato. “Eu saí de casa, mas eu já trouxe comigo toda a infraestrutura e o conhecimento. Mas o artesanato é aquela coisa… a gente está sempre aprendendo”, analisa. Trabalhando prioritariamente com ferro e vidro, após ter se profissionalizado pela Fundação Gaúcha do Trabalho e Ação Social (FGTAS), fez exposições na Casa do Artesão, na Feira de Artesanato do Shopping Lindóia e no Brique da Redenção.

Nascido no Alegrete, João Villaverde é músico de bar desde 1988. Chegou na capital gaúcha dez anos depois, integrou o Grupo Varietá e costuma se apresentar no Chalé da Praça XV e no 360 POA Gastrobar, além de restaurantes, no Boteco Exportação e também no Coco Bambu. Já tocou em vários bares de Porto Alegre, Caxias, Santa Maria, em eventos e feiras. Com influência da MPB, passando pela bossa nova, samba, pop nacional, temas regionais, latino americano e até axé e forró, tem um trabalho autoral que em breve estará disponível nas plataformas digitais.

Com trajetórias tão distintas, o rapper Gangster, a dançarina Rita, o artesão Leszczynski e o músico da noite João Villaverde compartilham o abalo que o novo coronavírus causou — e ainda causa — na classe artística, cujo trabalho, normalmente, está  relacionado à aglomeração de pessoas, tudo o que a maior crise sanitária dos últimos 100 anos não permite acontecer. Sem público, com o trabalho afetado e a renda diminuída, os quatro artistas são um pequeno retrato do quão importante é a Lei Aldir Blanc, aprovada pelo Congresso Nacional como um socorro emergencial à classe artística.

Com trabalhos em ferro e vidro, o artesão Leo Leszczynski diz que o dinheiro ajudará quem vive da venda de seus produtos e que, devido à pandemia, não pode mais contar com essa renda. Foto: Acervo pessoal

A lei em Porto Alegre

Apesar de o governo do prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB) não ter se caracterizado pelo diálogo com conselhos e entidades de classe trabalhadora, a aplicação da Lei Aldir Blanc na capital gaúcha cursou um rito diferente de outros temas durante os quatro anos da gestão que se encerra nos próximos dias. 

As 16 entidades representativas de segmentos artísticos, mais os povos tradicionais, como indígenas e quilombolas, se mobilizaram para pleitear seu espaço junto à Prefeitura de Porto Alegre e participar da organização de como os recursos seriam repassados. E o pleito foi atendido, por meio de um comitê para tratar do assunto. Porto Alegre recebeu pouco mais de R$ 9 milhões via Lei Aldir Blanc.

A lei estipula duas possibilidades de repasse: o chamado inciso 2 (auxilio emergencial para entidades artístico-culturais) e o inciso 3 (editais com repasse direto aos artistas). Com isso, cada um dos 16 segmentos artísticos dialogou com sua classe e elaborou o próprio modelo de repasse. 

Representante do Sindicato dos Músicos do Rio Grande do Sul no comitê criado pela Prefeitura, Lila Borges explica que a categoria dos músicos defendeu que fosse destinado maior volume de recursos para os editais, considerando a realidade da classe. A proposta, entretanto, não avançou e, num primeiro momento, prevaleceu o entendimento de dividir 50% dos recursos para espaços culturas e 50% para editais. 

Com o andamento das negociações, no final os espaços culturais (incluindo estúdios, teatros, grupos de dança e pontos de cultura, entre outros) ficaram com cerca de 70% do total dos recursos e os editais com 30%. São 660 espaços culturais beneficiados, totalizando o valor de R$ 6.220.500,00.

“Teve uma baita de uma bronca, porque a música era uma das únicas que queria mais dinheiro para os editais, mas perdemos na votação”, diz Lila, professora de violão e flauta, e figura constante nos bares de Porto Alegre. Ela justifica a posição explicando que, historicamente, os músicos costumam ser maioria entre os inscritos em editais, seja por haver na cidade um número maior de músicos do que outros artistas ou porque mesmo outras manifestações artísticas também contemplam músicos.

“A gente queria mais dinheiro para o inciso 3, mas não conseguimos. Então a nossa ideia era de que a divisão desse dinheiro fosse de acordo com o número de inscritos, mas isso também não aconteceu, os outros segmentos acharam que não era justo e que todos os segmentos teriam que receber o mesmo valor”, explica. 

Com isso, o inciso 3 contemplou dois editais de premiação: o POA LAB, que beneficiou 807 proponentes, como grupos, coletivos, escolas de samba, artistas, técnicos, profissionais da cultura, entre outros; e o edital denominado Povos e Comunidades Indígenas, que atendeu 52 proponentes, entre comunidades quilombolas, ribeirinhas,  ciganos, além de uma linha específica para terreiros. Segundo a Secretaria Municipal de Cultura (SMC), a soma dos dois editais atendeu, de forma direta, mais de 12 mil pessoas e famílias, com o total de aproximadamente R$ 3 milhões.

Cada um dos 16 segmentos artísticos recebeu R$ 148 mil, independente do número de inscritos, e organizou junto a sua classe como distribuir o valor. Lila reclama que o resultado foi o segmento da música ter ficado com pouco recurso em comparação com o número de artistas. Tendo como valor máximo R$ 1.900, o recurso permitiu contemplar 77 músicos da cidade. “O que são 77 pessoas numa cidade como Porto Alegre?”, questiona. 

Um acordo entre os segmentos artísticos determinou que, caso sobrasse recurso em alguma área, esse valor seria repassado para quem tivesse o maior número de inscritos. Dessa forma, a música conseguiu aumentar o número de pessoas contempladas de 77 para quase 200 músicos.

A lei determina que a Prefeitura deve realizar todos os pagamentos até o dia 31 de dezembro. O dinheiro que não sair dos cofres do governo municipal até essa data, voltará para o governo federal. Em Brasília, já há articulações no Congresso Nacional para ampliar esse prazo, pois muitas cidade do País estão enfrentando dificuldades em concluir todo o processo dentro do prazo.

Devido à burocracia de um trabalho manual, pessoa por pessoa, artistas têm reclamado que o pagamento está lento. A Secretaria Municipal de Cultura (SMC) informa ter ultrapassado a marca de 50% dos recursos desembolsados. Se não houver mudanças no prazo da lei, a Prefeitura tem pouco mais de 15 dias para conseguir pagar os outros 50%.

No âmbito estadual, o governo agiu de modo diferente ao repassar os valores para entidades que, a partir de agora, são responsáveis por elaborar os editais, de modo a já transferir os recursos e poder efetuar os pagamentos mesmo em 2021.

O rapper Gangster lamenta que a burocracia da lei tenha deixado de fora muitas pessoas que precisam dos valores. Foto: Natália Remião

A vida pela arte

Gangster não só tocou em muitas comunidades de Porto Alegre como também em São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Bahia, Uruguai e Argentina. O rapper é um dos coordenadores do Fórum Permanente do Hip Hop Gaúcho e fundador da ONG Becos e Vielas. “É com essa militância que venho construindo também uma carreira. Hoje a gente tá praticamente construindo a cultura hip hop junto com Porto Alegre e com cada vereador e Prefeito que se elege. A gente tá nessa crescente, lançando videoclipe e correndo pelos sonhos”, explica.

Sobre a Lei Aldir Blanc, ele aponta pontos positivos e negativos. A parte positiva é a lei ter sido proposta por uma pessoa negra e que teve um olhar forte para cultura do País. “Nunca foram investidos três bilhões na cultura e isso automaticamente nos ajudou e ainda está ajudando no meio de uma pandemia”, afirma. O ponto negativo é a demora nos pagamentos. “Tá demorando demais esse processo para acontecer. É uma lei emergencial que era para ser muito mais rápida para que os artistas não pudessem ficar sem aquele recurso para sobreviver. Eu mesmo tive que parar shows e encerrar várias coisas que eu fazia e me mantinha”, conta. 

O rapper também critica a burocracia pelo direito ao recurso e avalia que isso é um dos maiores problemas para os artistas. “O bom é que a gente conseguiu colocar o nosso edital dentro da Aldir Blanc, mas ainda tiveram muitas pessoas que ficaram de fora do processo”, afirma. E completa: “Essa lei é para quem realmente precisa. É para as pessoas que moram na comunidade, pessoas que fazem a cultura da cidade pulsar. A gente viu muitas pessoas da elite que estão acostumadas a estar nesses editais e que se beneficiaram, não foi à toa que fizeram editais só com CNPJ, a gente fez edital com CPF para ser mais rápido”. 

Gangster acredita que o dinheiro, quando for pago, servirá para os artistas quitarem  dívidas e contas atrasadas. Ele destaca que a arte tem sido vital para todas as pessoas durante quase um ano inteiro de quarenta e recolhimento. “A gente precisa manter os artistas vivos, todo mundo que tá em casa em quarentena, entende que o artista é fundamental, um livro, filme, música, arte, jogos, vem do artista. A lei se fosse mais incisiva, seria uma lei 100%. Na minha avaliação ainda não é 100% porque não pegou todo o pessoal de periferia.”

A professora de dança e bailarina Rita Guerra avalia que, apesar da Lei Aldir Blanc ter sido fruto da mobilização dos artistas, a gestão responsável ainda falha na assistência à classe. “A lei foi regulamentada por um governo federal que não entende, nunca quis entender e não vai entender o modo de fazer da cultura desse país”, enfatiza. “Então na sua essência, a lei já veio falha apesar de ser uma iniciativa muito boa. Mas como é que vai auxiliar alguém que você não sabe do que elas precisam, você não sabe onde elas estão?”, questiona.

“O discurso inicial era que isso chegasse em todas as pontas. Num país de grandes e históricas desigualdades sociais, raciais e de gênero, a gente não achou que o discurso de chegar na ponta fosse efetivamente acontecer porque a gente sabe que desde o acesso ao meio on-line e digital para que você consiga esse recurso, a exclusão já começa aí”, pondera.

A bailarina diz que a importância da lei é garantir a sua subsistência na atividade artística, além da subsistência como segurança física e de saúde. “O legado que eu tenho da Lei Aldir Blanc é um legado de desafio”, completa.

Por sua vez, o artesão Leo Leszczynski conta que, apesar de assinar jornais e ter o hábito de ouvir notícias pelo rádio, só tomou conhecimento sobre a Lei Aldir Blanc por meio de sua sobrinha. “Eu fiquei surpreso porque eu me considero um cara informado, não sou do digital, mas tenho duas assinaturas de jornal, escuto rádio, acompanho os programas da Caixa Econômica Federal e do auxílio emergencial. Então não foi muito bem divulgado”, analisa.

Olhando para a própria carreira, ele recorda que só passou a ter mais confiança em participar de feiras, lojas e oferecer financeiramente seu trabalho após obter o registro profissional, pois até então fazia suas peças mais para amigos e familiares.

Leszczynski diz que o recurso da Lei Aldir Blanc beneficia aqueles que viviam da venda de seus produtos e que hoje, devido à pandemia, não podem mais contar com esse recurso. “A gente vive do que produz e do que vende, a gente não tem uma renda mensal”, afirma o artesão. “Agora com as pessoas em casa e com a circulação restrita, a gente não pode levar o nosso trabalho. Como o próprio nome diz, é um socorro financeiro, vai para quem tá precisando, justamente porque todos foram afetados.”

O músico João Villaverde define a Lei Aldir Blanc como algo extremamente importante para a cultura. Ele destaca já ser difícil a valorização da classe artística, uma situação  agravada pela pandemia, o que justifica o amparo. “Apesar das burocracias e dificuldades da papelada exigida, temos que fazer pressão nas autoridades pra podermos usufruir de um direito cultural. Vivo exclusivamente da música e fui muito atingido pela pandemia, então a Lei Aldir Blanc veio pra confortar um pouco nosso dia dia.”


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