Opinião
|
10 de janeiro de 2023
|
07:00

Uma crise aguda de ‘hipocondria social’ (Coluna da APPOA)

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Luciano Mattuella (*)

Assistir à posse de Lula foi um processo curativo.

Desde o dia dois de janeiro, eu vinha conseguindo ler novamente. Também vinha sendo possível rir com mais leveza. Por vezes, me peguei até com desatinos esperançosos, um sentimento tão marginal para o pessimista irremediável que sou.

Infelizmente, como costuma acontecer com os pessimistas, eu tive razão em temperar minha esperança com um tanto de cautela. 

O que vimos acontecer no domingo passado, em que um punhado de terroristas invadiram prédios do governo federal e fizeram novamente a nossa atenção de refém, acabou provocando uma recaída em uma condição que nos acometeu por no mínimo quatro anos.

O leitor talvez não saiba, mas passamos por uma patologia psíquica gravíssima, um mal que nos consumia o humor e nos embotava o pensamento: durante o mandato do presidente anterior, uma  parte considerável dos brasileiros sofreu de hipocondria social.

Claro que esse diagnóstico não existe nos livros clínicos – é uma brincadeira minha.

Eu até tinha voltado a brincar com despudor, vejam só. Mais um contra-efeito desta cura tão peculiar.

Mas sim, uma hipocondria social.

Explico. 

São dois os traços que marcam de forma mais característica a hipocondria (aqui já não estou só brincando): um deles, a sensação de que a qualquer momento algo terrível irá acontecer, de que o perigo está à espreita, só esperando que baixemos a guarda para, enfim, nos tomar por inteiro. O outro, a estratégia que usamos para lidar com esta ameaça constante: o hipocondríaco tenta a todo tempo saber mais sobre os perigos, ter um conhecimento maior sobre aquilo que poderia feri-lo ou matá-lo. 

O hipocondríaco é aquele que faz a aposta de que, se souber tudo sobre a ameaça que lhe aflige, então poderá controlá-la, prever seu comportamento e desviar na hora exata em que ela der o bote. 

O problema é que esta forma de defesa sempre falha: o hipocondríaco sempre sai da consulta com a sensação de não ter dito exatamente o que tinha que ter falado ao médico, ou que este não entendeu perfeitamente a queixa que a ele era endereçada. Assim, solicita mais um exame, agenda mais uma consulta para tirar as dúvidas que ainda sobraram, pede que o outro possa lhe garantir que está tudo bem.

Mas, infelizmente, para o hipocondríaco sempre vai faltar aquela palavra de conforto que viria dar um fim para a percepção excruciante de estar sendo perseguido pelo próprio corpo, pelas próprias vísceras. 

O hipocondríaco é a presa, mas também é o seu próprio predador. No fim, acaba aprisionado dentro dos muros que ele próprio criou para se proteger do exterior persecutório.

Pois bem, ao longo deste quatro últimos anos nós nos vimos nesta mesma posição: sob um governo autoritário e caótico, tivemos que construir nossas fortalezas psíquicas para dar conta da aleatoriedade que é ter no cargo máximo do país alguém desprovido das condições mínimas para tal.

Sendo governados por alguém cujas mandos e desmandos eram deliberados a partir dos próprios caprichos, nós nos encontramos – eu me encontrei, pelo menos – partilhando da mesma sintomatologia mínima do hipocondríaco: estávamos a todo tempo atentos às notícias, obsedados por qualquer informação que pudesse nos dar uma mínima percepção de coerência. Algo que nunca aconteceu, muito pelo contrário: a cada dia, a aposta no absurdo era redobrada e a terra já arrasada revirada uma e outra vez.

A palavra tranquilizadora nunca veio, mesmo porque se tratou de um governo para quem a palavra pouco importava, organizado em torno de uma máquina de fake news e propagador de versões cada vez mais paranóicas da realidade. Tanto assim, que ainda hoje há aqueles que talvez nunca mais conseguirão “voltar” à realidade, que seguem acreditando na fraude das eleições e que mantêm a cartilha de um líder que, a bem da verdade, nunca soube o que significava estar no comando de nada. Foram estes soldadinhos de chumbo que sequestraram novamente a nossa atenção no domingo – e, como todo radical, eles não foram a exceção, mas a explicitação do que se encontra por detrás da máscara de todo “cidadão de bem”.

Foram quatro anos em que, cada um a seu jeito, fomos elaborando estratégias de sobrevivência psíquica – quando não física, como no caso da negativa pelas vacinas contra COVID – que nos dessem o alento suficiente para, apesar de nossa angústia perene, ainda assim continuar. 

E isso requereu muita energia.

Não foram poucos os amigos que diziam ser impossível desligar a televisão e deixar de ver as notícias, ou que ficaram viciados em podcasts sobre política. Afinal, o hipocondríaco, ainda que tema pela vida, também é fascinado pela ameaça que supõe estar à espreita. Se torna um profundo especialista na doença imaginária que acredita lhe acometer. 

O triste é que, no caso dos últimos quatro anos, a ameaça não era imaginária. 

Nós realmente tivemos que lidar com a negação da gravidade de uma pandemia, com o descrédito internacional do nosso país, com a desinformação como estratégia de colonização do pensamento. Nós estivemos por tempo demais expostos às mais variadas formas de violência psicológica, física e política. Muitos laços foram rompidos por conta de um presidente que fazia da destruição o seu mote cotidiano e, com isso, incentivava os seus seguidores a fazerem o mesmo.

No decorrer de um final de semana que tinha tudo para ser tranquilo, em que me sentia curado, me vi novamente às voltas com os sintomas de antigamente, ainda que não com a mesma intensidade. Estarrecido frente à televisão, eu trocava mensagens com as pessoas próximas em busca da palavra redentora. Que não veio, mais uma vez.

Seria realmente muito mais fácil morar em um Brasil em que desligar a televisão e não ver as notícias não significa baixar a guarda, mas tão simplesmente só querer se ocupar com outras coisas, dedicar o tempo ao entretenimento e ao lazer.

Infelizmente, no domingo nós percebemos que, apesar de todos os nossos esforços curativos, ainda o nosso presidente e sua equipe terão muito trabalho para conter os novos surtos agudos dessa hipocondria social que tão bem conhecemos – mas que julgávamos controlada.

(*) Luciano Mattuella é psicanalista, membro da APPOA.

***

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora