Opinião
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13 de novembro de 2022
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10:03

O impressionante foi Lula ter vencido: ratos e redes (por Tarso Genro e Sandra Bitencourt)

Foto: Ricardo Stuckert
Foto: Ricardo Stuckert

Tarso Genro e Sandra Bitencourt (*)

É a democracia liberal-representativa – e com ela a sua República – não mais o socialismo e a social-democracia, o alvo a ser destruído por aqueles “poderes de fato”, para os quais não interessam nem civilização nem empatia, nem solidariedade nem tolerância. Ao não compreender de maneira adequada que as derrotas da barbárie são tão episódicas quanto o seu ressurgimento, abrimos espaço para que a democracia política se tornasse refém de uma extrema-direita psicótica, que surgiu combinada com o ultraliberalismo armamentista, irracional e cruel. Instaurou-se, assim, o Golpe de Estado continuado – no dizer de Boaventura de Sousa Santos – ora interrompido, mas ainda não derrotado totalmente pela vitória de Lula. Neste contexto, a extrema-direita não permaneceu somente como uma adepta da exceção intermitente, mas dotou-se de um imenso poder financiado pela subversão internacional fascista e apropriou-se de novas formas de dominação da cognição alheia, reinventando a sua linguagem e as suas técnicas de uso das redes digitais.

Do outro lado do vazio atual na crise da democracia liberal estava o fosso do fascismo redivivo, de onde saem as imprecações que ensinam: para viver é preciso matar. E que o sentido, para quem permanece vivo, estaria logo ali, depois da esquina da violência onde ardem em todo o planeta as fagulhas do internacionalismo do ódio. Elas vertem dos subterrâneos das redes clandestinas, das falsidades com palavras curtas e sentenças breves, como ordens que fixam a cognição arbitrária do tempo presente. É como se este tempo fosse – num mesmo ato – tempo passado romantizado e futuro utópico com emoções imediatas, verbo transtornado pelas súplicas para purificar a alma do mundo:  poder mágico capaz de transformar as infelicidades coletivas dos indivíduos somados, na organização de um mundo “limpo”, uniforme e total.

Theodor Adorno já na sua obra de 1950, “Estudos sobre a personalidade autoritária” (São Paulo, 2019) apontava que a ignorância funcionava em favor de tendências reacionárias gerais. Todos os movimentos fascistas modernos, diz o autor, visaram os ignorantes, “eles (os dirigentes fascistas) conscientemente manipulam os fatos de uma maneira que só poderia ser bem-sucedida com aqueles que não estavam familiarizados com os fatos” (pg. 345). Nestes tempos de ciclos extremos de uma direita nativa digital pode-se afirmar que a confrontação política se deslocou, rapidamente, do terreno das necessidades materiais que permanecem como base da vida comum, para o terreno dos afetos no ambiente online, onde as emoções comandam o espírito da Guerra Santa e onde os corpos em compulsão respiram conflitos radicais.

Ainda no século XVIII, Tocqueville e John Stuart Mill viam a opinião pública como corruptível e despótica e, muitas vezes, prescindindo da razão. Nestas novas e futuras condições, os pontos de vista de grupos relativamente pequenos, porém detentores dos melhores meios de comunicação, já poderiam organizar-se para dominar as massas. Assim, os grupos mais articulados, que tradicionalmente tem como garantir a mobilização em torno de demandas e/ou questões determinantes do comportamento de alguma nação, em algum momento estariam – entre tradição e razão – tensionando para disputar o controle da opinião pública.

A emergência das redes de comunicação global, das redes sociais, das comunidades virtuais ativas e com forte poder de influência, em distintos aspectos da vida moderna (relações de consumo, culturais, afetivas, políticas), com redução dos custos da participação democrática, apontam para a necessidade de pertencer não somente a grupos de ratos, mas a grupos em geral, a públicos, a circular tendências, estilos, e logicamente a fazer circular suas opiniões. Tudo isso será espelhado com a cientificidade da propaganda de regimes totalitários pretéritos, com a customização de informações e propagandas, testagem de mensagens e produção em massa de boatos e da promoção da desordem no ambiente informacional, na era de conexão intensiva.

Neste cenário atual brasileiro vimos circular na internet e nas ruas, diferentes tipos de posters que reproduziam a propaganda nas eleições de julho de 1932 do nacional-socialismo na Alemanha.  São as técnicas, então modernas, de propaganda – incluindo imagens fortes e mensagens simples – que ajudaram a tornar o austríaco Adolf Hitler, um extremista pouco conhecido na Alemanha, em um dos principais candidatos à presidência do país em 1932. Logo após a Primeira Guerra Mundial, o Partido Nazista começou a se transformar, de um obscuro e extremista grupo de oposição no maior partido político da Alemanha democrática. Hitler reconheceu como a propaganda combinada com o uso do terror, poderia ajudar ao seu partido, radical de direita e nacionalista, ganhar o apoio e os votos dos alemães.

A Alemanha “racialmente pura e utópica”, que precisava se defender daqueles que a destruíram, na Primeira Guerra Mundial combinou duas ideias motrizes da propaganda política: o despertar da nação como combate a um inimigo; e uma ameaça presente, real ou ficta. Durante a Segunda Guerra Mundial, os propagandistas nazistas frequentemente descreveram “o judeu”, “o comunista”, o diferente, como um conspirador que tramava a dominação mundial, agindo nos bastidores de nações em guerra com a Alemanha. O “financista judeu” seria o responsável por manipular os aliados, a Grã-Bretanha, e os demais Estados inimigos. O proletariado militante seria o sujeito da destruição nacional-alemã com seu (suposto) belo passado, devidamente romantizado e historicamente manipulado. Hitler foi o modelo do bolsonarismo, devidamente disfarçado numa sociopata de tal forma adequada ao nosso mundo real, que conseguiu ser naturalizada pelas classes dominantes e por uma grande parte da mídia, que o fazia parecer apenas um tipo acidental, mas não era.

Qual o argumento de Bolsonaro e seus sequazes, para enquadrar o Brasil na formação de uma nação “purificada” dos seus vícios de “corrupção”, miscigenada e racialmente impura? Não sendo suficiente a ficção do comunismo como presença inimiga, nem tendo os judeus sabotando o Estado, o extremismo de direita além de reinventar estes “perigos” precisaria, com a ajuda da mídia oligopólica, estimular fluxos de ódio contra alguém cuja identidade democrática e social se aproximava do povo – mobilizado e descontente – para substituir a esperança cansada pelo movimento violento da irracionalidade. O líder popular principal, Lula da Silva, que defendia políticas sociais de natureza democrática e ações econômicas inclusivas e amplas, se eliminado da política, poderia deixar um vazio para os oprimidos, ignorantes e espoliados, se deslocarem da política como solução lenta, para o pragmatismo vicioso e rápido da violência autoritária. E assim fizeram, mas perderam.

O impressionante não foi Bolsonaro quase ter ganho, foi Lula ter vencido. Contra todas as ilegalidades e corrupção de Governo, contra uma propaganda customizada para capturar e moldar emoções perversas, pressões, crimes cometidos pelo Presidente, vedações das estradas para desmobilizar eleitores no Nordeste, bilhões de dólares transitando nas redes criminosas, assassinatos, pressões patronais, orçamento secreto, o impressionante foi Lula ter vencido: foi o povo ter vencido. Viva o povo brasileiro!

(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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