Opinião
|
9 de novembro de 2022
|
08:33

Espectros políticos (por Jorge Barcellos)

Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21

Jorge Barcellos (*)

A variedade de conceitos com que o filósofo sul-coreano Byung ChulHan oferece através de sua obra é um campo teórico útil para analisar o bolsonarismo. Em sua obra No Enxame (Lisboa, Relógio d’Água, 2016) Han analisa como as redes sociais e a internet transformam a sociedade atual. Para ele, elas produzem uma nova massa, o enxame digital. No capítulo que dá título à obra, Han parte da definição de massas do psicólogo das multidões Gustavo Le Bon para chegar a sua definição de enxame. Autor de Psicologia das Multidões (1895), Le Bon acreditava que seu tempo era o da ascensão das massas, e, portanto, um período de “transição e anarquia”. 

Hoje as massas bolsonaristas, ao contrário do século XIX, só preservam das massas bonvinianas o caráter anárquico e sem sentido. Não há transição para nada de novo, ao contrário, elas não estão indo para um nível superior, mas representam um degrau inferior, de redução da cidadania e da prática política. O que são as cenas irracionais de indivíduos postando a bandeira e marchando como um simulacro nazista em plena luz do dia? O que são essas pessoas esperançosas na capitulação do Exército, das Forças Armadas, quando o próprio Presidente já deu início a transição e seus próprios filhos procuram sua cidadania italiana, dando um claro sinal de que estão a postos a fugir como os ratos em um navio a naufragar?

Estas massas acreditam-se detentoras do direito divino das multidões como definia Le Bon, mas não passam de seu simulacro em seu sonho de instaurar o seu direito divino na política. Mas enquanto Han diferencia a crise de civilização das massas do alvorecer do século retrasado como distinta da crise advinda da revolução digital, aqui as massas bolsonaristas são o efeito ruim da revolução digital. Nossas massas de extrema-direita não chegam a ser totalmente desprovidas de alma ou de espírito como sugere Han, mas possuem uma alma fraca, perdida. Han diz que a alma congrega e unifica, ao contrário do enxame digital, composto por indivíduos isolados “os indivíduos que se reúnem num enxame digital não desenvolvem qualquer “nós”. Não há, no enxame, qualquer concordância que consolide a multidão na massa que seja um sujeito de ação. O enxame digital, ao contrário da massa, não tem coerência própria. Não se exprime através e uma voz. É por isso, que o percebemos como ruído” (Han, No Enxame, p. 22). 

Ora, nossas massas bolsonaristas são esse enxame digital e com a derrota de seu candidato, perderam sua alma, mais ou menos como quando morre uma rainha na colmeia. Não há um “nós” no enxame bolsonarista, simplesmente porque não estão nem aí para os fracos e os humildes e à desigualdade respondem com um “f@dam-se os pobres!”. Já foi apontado por críticos e estudiosos o quanto isso está distante dos preceitos de defesa da família e da religião que tanto advogam. Como diz Han, faz parte do enxame digital não ter coerência própria, e por essa razão, não se exprimem por uma voz – na verdade, a única voz que possuíam era a do Presidente, que, não eleito, caiu em profundo silêncio. Ao contrário do enxame digital de Han, não os percebemos como ruído, mas como imagem. Não é uma imagem que ficou e que foi transformada em meme nas redes sociais, a do bolsonarista que, indignado, agarrou-se a frente de um caminhão e viajou por quilômetros com o risco da própria vida?

No enxame bolsonarista, ou o “homo bolsonarista”, seus integrantes são habitantes de um novo mundo que mistura o pior de todos: o pior dos efeitos do mundo digital e o pior do mundo analógico. O que é sua aglomeração diante dos quartéis a procura da melhor selfie, dos incessantes compartilhamentos de fake news “o careca foi preso? Viva!”; “Paulo Freire, futuro Ministro da Educação do Governo Lula morreu? Viva!”. Não estamos diante de um curto-circuito ideológico, do cruzamento do homo eletronicus de McLuhan com o o homo digital de Han?  Nosso bolsonarista não é, como diz McLuhan, um espectador num estádio desportivo; ao contrário, mais parece um cidadão perdido em filme do grupo inglês Monty Phyton, vivendo sua própria comédia política surreal. A ambos serve, entretanto, a conclusão de McLuhan “Tal como o espectador num estádio desportivo não é ninguém, também o cidadão eletrônico é um homem cuja identidade privada foi psiquicamente anulada por uma exigência excessiva”(McLuhan, citado por Han, p. 23). Qual é essa exigência no caso dos bolsonaristas? Tomar uma posição sobre o que não sabe, o próprio projeto bolsonarista. 

O homo bolsonarista é esse ser intermediário entre o homo eletronicus e o homo digitalis. Ele é quase um ninguém como o homo digitalis porque faz parte de um enxame político. Entretanto, ele não tem, como sugere Han, sua identidade privada, porque não se manifesta de modo anônimo, ao contrário, antes quer expor sua identidade a alguém, quer ser visto, quer e deseja atenção. Não é suficiente portar uma bandeira, é preciso trotar com ela; não é suficiente andar de carro com bandeiras bolsonaristas, é preciso ficar à frente dos caminhões arriscando sua vida; não suficiente a fama e o estrelato que conquistaram em carreiras na Rede Globo: como Cássia Kiss e Regina Duarte, é preciso jogar-se a lama de cenas dantescas erguendo em praça pública imagens ou declarando seu voto. O bolsonarista comum, da rua, é uma identidade privada em processo de dissolução, está no espaço intersticial entre o ninguém e o anonimato, quer ser alguém – quem? Um bolsonarista!

O homo bolsonarista é diferente do homo digital porque ainda preserva o desejo de reunião. Não em estádios, como falava Jean Baudrillard em sua A Sombra das Maiorias Silenciosas (Brasiliense), e nem recusam a reunião, como as massas digitais de Han. Sua reunião é no último lugar em que um ser consciente de sua história iria se reunir: em frente aos quartéis. O quartel não é um lugar político como o parlamento, não serve à reivindicação, ao contrário. Na história brasileira, durante o Regime Militar, alguns quartéis serviram para a violação dos direitos humanos que seus integrantes juraram proteger. Os bolsonaristas, ao contrário, reúnem-se em frente a única referência que tem do Presidente, que foi militar, nos quartéis. É por isso que agem como uma colmeia, voltando ao lugar onde nasceu sua rainha. Mas ainda falta a eles a intimidade das reuniões de esquerda, onde se discutia estratégia, se aprofundava conhecimento dos teóricos, debatia-se questões. Na reunião bolsonarista que o acampamento em frente aos quartéis promove, o que se vê é a compra e venda de bugigangas, a comilança desenfreada de churrasquinho e pastel. Ou, como diz Han, ali “formam uma concentração sem reunião, uma multiplicidade sem interioridade”. (Han, No Enxame, p. 23).  Han diz que o homo digital é como o hikikomori, palavra japonesa que significa isolado em casa e que se refere aos indivíduos mais ou menos jovens que se fecham na esfera doméstica, evitando contato com outras pessoas. O homo bolsonarista é esse hikikomori parcial: ele é capaz de sair de casa, o que significa, das redes sociais bolsonaristas, desde que seu destino lhe seja familiar, os quartéis. Nesse ambiente que lhe parece uma extensão da casa, os bolsonaristas sentem-se felizes. Mas eles nunca se perguntam sobre as histórias que pairam sobre os porões dos quartéis em frente aos quais acampam…

Han diz que às vezes os homo digitalis assumem configuração de coletivos, como no caso de smart mobs, mobilizações extremamente fugazes e inteligentes. As mobilizações bolsonaristas, ao contrário, são ignorantes, no sentido de que ignoram a história que está por detrás do que lutam defender: são servidores públicos bolsonaristas que se associam a um projeto que busca, ao final, a extinção do serviço público e por aí vai. Como é um movimento sem alma, a multidão bolsonarista marcha não em uma direção, mas está perdida frente as informações que recebe das redes sociais, imersa em fake news. É uma massa unida por uma ideologia, mas qual? A que cada homo bolsonarista acredita que faz sentido para si, incapaz de formar um nós social que a Constituição que defendem visa atingir; eles não compreendem, portanto, o significado de uma ação em defesa do bem comum,  porque não são uma massa decidida, são uma massa que sofre influência, seduzida pelo poder, que não tem poder de decisão “Os enxames não marcham”, diz Han, ao contrário das massas bolsonaristas que marcham, mas o fazem como simulação, imitação de representações recalcadas de mundos que imaginam que há poder, mas que realmente, nunca estudaram direito, o nazismo, o fascismo. 

É no capítulo Espectros Digitais de No Enxame que vem a principal inspiração de seu texto. O capítulo inicia pela contextualização do papel das cartas para Kafka. A carta aqui surge como lugar distante do digital que funda a comunicação. Depois da carta, em termos de comunicação, chegaram o telefone e a telegrafia. Para Kafka, diz Han, mesmo a carta era um objeto enganador “Aonde se terá ido buscar a idéia de que as pessoas podiam comunicar por cartas? Podemos pensar numa pessoa distante, podemos nos agarrar a uma pessoa próxima: tudo mais está para lá das forças humanas”, diz Kafka em Carta à Milena. É que o escritor, diz Han, considera que a carta inaugura uma era de comunicação com espectros “que nos apanham e devoram-nos pelo caminho. Os espectros não morrerão de fome, e, em contrapartida, seremos nós a perecer” (Han, No Enxame, p. 68).

Para Han, há uma linha contínua entre os espectros previstos por Kafka na comunicação por cartas ao nascimento da Internet, do Twitter e do Facebook. Segundo ele, estes são os espectros da nova geração, espectros digitais, para lá das forças humanas e capazes de produzir efeitos ruidosos e incontroláveis “Não nos terão feito realmente esquecer a maneira de pensar num ser distante e a maneira de abordar um ser próximo?”. É neste sentido que entendo que a massa bolsonarista constitui não apenas um espectro digital, quer dizer, um movimento influenciado pelas condições de reelaboração deste universo mas que é mais, é um espectro político pois se trata de como um contingente da população que possui uma forma particular de elaborar seu sentido de abordagem com o próximo. É só lembrar recentes exemplos passados em escolas particulares da Capital onde tivemos manifestações racistas e virulentas contra grupos sociais excluídos em nome do bolsonarismo. Esses alunos, em fase de formação, revelaram um notável déficit social, sua incapacidade de abordar um ser próximo de que fala Han. Essa juventude de extrema-direita, preconceituosa, racista e homofóbica foi construída no seio de famílias bolsonaristas, é claro, mas também pelas redes sociais a qual essa geração é notável consumidora. Com a internet, diz Han, “as coisas, outrora mudas, começaram agora a falar”. Não é exatamente esta forma que descreve para a esquerda o que está acontecendo, a emergência dessa parcela da sociedade bolsonarista? Não é disto que falam seus intérpretes na tentativa de entender as formas de engajamento da massa no movimento protagonizado por Jair Bolsonaro? Han cita o romance de E. M. Forster, The Machine Stops, como aquele que antecipa a catástrofe da destruição do mundo por bandos de espectros. Não é outra imagem exata da perplexidade da esquerda frente as ações irracionais dos bolsonaristas, o medo de que a extrema direita seja capaz de destruir os mundos contando com seus militantes que agem como espectros políticos em sua defesa?

Han afirma que a comunicação digital assume não só a forma de espectro, mas de vírus “é contagiosa porque se produz imediatamente no plano emocional ou afetivo”, diz Han (p. 69). Quer dizer, as posições políticas bolsonaristas não pressupõem uma leitura, um aprofundamento ou debate entre seus pares, já que funcionam na velocidade de divulgação das fake news. Uma delas envolve a Lady Gaga numa situação; outra envolve uma personagem holandesa como se fosse uma política nacional. Tudo é rápido demais para a massa bolsonarista pesquisar e verificar sua autenticidade. Não precisam ter sentido, basta circular. É o caminho contrário que fazem os movimentos sociais críticos, seja da própria imprensa, com suas centrais de combate as fake news, sejam dos movimentos sociais que buscam esclarecer o caráter mentiroso ou anedótico do que circula nas redes sociais bolsonaristas “a medida que a transparência cresce, alastra também a sombra”, diz Han.  

Não há gesto mais revelador da natureza de um movimento social do que prostrar-se diante de um prédio militar. Talvez seja este o último ponto a ser abordado na tentativa de explicar por que os bolsonaristas agem do modo como agem. Talvez não tenhamos investigado suficientemente o tema como faz Lucy Huskinson, em seu Arquitetura e Psiquê: um estudo psicanalítico de como os edifícios impactam nossas vidas (Perspectiva, 2022). Sua tese é a de que os edifícios nos afetam, do cercadinho no palácio do Planalto, em Brasília, aos prédios dos quartéis em Porto Alegre, a autora propõe que eles, os prédios, afetam nosso comportamento inconsciente ao mundo, de que somos atraídos por uma arquitetura – no caso a militar – que atende a nossas expectativas e requisitos inconscientes. Huskinson quer que o pensamento psicanalítico se liberte das relações interpessoais e passe a se preocupar com as coisas. É a mesma perspectiva da última obra de Byung Chul Han, Não Coisas, onde o autor também afirma que vivemos em um mundo onde dominam as informações, as não-coisas “a digitalização descoisifica e desencorpora o mundo” (Han, Não Coisas, p. 9). Nesse sentido, a busca pelos quartéis pela multidão bolsonarista não seria também uma reação equivocada a essa cultura digital, a busca por algo na ordem terrena, um ambiente estável para constituir morada? Como afirma Han, “elas são aquelas coisas do mundo, no sentido de Hannah Arendt, as quais se atribui a tarefa de estabilizar a vida humana. Elas lhe dão uma sustentação “(Han, Não Coisas, p. 11). Se tentarmos pensar o bolsonarismo como esse espectro político, esse fantasma que ameaça a democracia e que se sente em casa  nos quartéis, talvez tenhamos a chave para entender as motivações ocultas que sustentam o comportamento do campo da extrema direita na arena político-social  e assim, mais bem equipados, estaremos prontos para pensar novas estratégias subjetivas do ponto de vista da esquerda para a defesa da democracia.   

(*) Doutor em Educação/UFRGS, autor de “O êxtase neoliberal” (Editora Clube dos Autores, 2022)

***

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora