Opinião
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11 de outubro de 2022
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07:41

A democracia em perigo (por Odilon Marcuzzo do Canto)

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Odilon Marcuzzo do Canto (*)

O filósofo, advogado e diplomata inglês Thomas Morus (1478-1535) escreveu a sua mais destacada obra em 1516, Utopia. Morus imaginou uma nação-ilha onde se desenvolve a sociedade perfeita, tendo como regra principal o bem-estar de todos. Uma sociedade cujo valor maior é o “ser” e não o “ter”. Para simbolizar isso o uso do ouro, “o vil metal”, era tolerado somente como acessório infantil ou para a fabricação de peças para as masmorras, como correntes, algemas e penicos para os criminosos. A população viveria eternamente feliz, dedicada às diversões e às artes, sob a proteção de um estado todo poderoso, baseado em preceitos absolutamente racionais.

A evolução da humanidade criando o Estado-nação democrático, ultrapassou as aspirações do estado de bem-estar da quimérica ilha de Morus. O déspota esclarecido que governava Utopia foi substituído pela vontade soberana do povo. O Estado Democrático ideal, garantidor de uma completa cidadania para todos os seus habitantes, sem dúvida é um sonho inatingível. A democracia não é um estado estático e sim dinâmico, sempre em movimento, que pode ser na direção do avanço do processo civilizatório como também pode ser um movimento regressivo, de sufocação dos ideais democráticos; e ao contrário do que possa parecer, o sujeito fundamental na decisão da dinâmica desse movimento não é o político; é o cidadão! O exercício firme e decidido dos direitos de cidadania é que define o rumo desse jogo.  

Alguém já afirmou que a Democracia não garante o paraíso na terra mas impede que o inferno se instale. A morte das democracias e sua substituição por estados ditatoriais totalitários ou por cenários distópicos com a destruição das instituições, têm sido objeto da literatura, principalmente a partir do final do século XIX e início do século XX. George Orwell com “1984” e Aldous Huxley em “Admirável Mundo Novo” descrevem mundos imaginários, sob sistemas de governança sempre opressores, castradores das liberdades individuais, manipulados por grupos autoritários.

Os cenários de destruição da democracia descritos na ficção do início de século passado, parecem estar se tornando realidade em alguns países nas primeiras décadas deste século. Turquia, Venezuela, Nicarágua e Hungria são exemplos. Mesmo em países com tradição democrática bem consolidada é possível a ocorrência de eventos que coloquem em xeque o Estado democrático. As ameaças contemporâneas às democracias partem muito mais de representantes eleitos democraticamente e que, depois de empossados assumem atitudes antidemocráticas do que os, infelizmente tradicionais na América Latina, golpes militares. Esta foi a constatação da análise feita pelos professores da Universidade de Harvard, Steven Levitzky e Daniel Ziblatt, em um importante ensaio com o título “Como as Democracias Morrem” -Ed. Zahar, 2018. 

Ao se debruçarem com mais cuidado sobre as razões e consequências da eleição do Presidente Trump nos Estados Unidos, um outsider na cena política, eles também examinaram a situação encontrada em países mais periféricos. Analisando as características dos líderes eleitos e que posteriormente apresentaram comportamentos autoritários e antidemocráticos, os dois professores definiram alguns indicadores capazes de identificar comportamentos autoritários.

O primeiro indicador é a continuada rejeição às regras do jogo democrático; atitudes como tentativas de deslegitimar as eleições com alegações não comprovadas de fraude eleitoral; as perseverantes tentativas de descreditar os sistemas eleitorais em uso; a sistemática negação de ver seus oponentes como adversários no campo político, taxando-os como inimigos da pátria, das liberdades e da família tradicional cristã; a constante recorrência à utilização enviesada do equipamento legal, o lawfare, com acusações infundadas e não comprovadas de corrupção; as inúmeras investidas contra o Poder Judiciário e a blindagem às ações de controle do Congresso através da compra sistemática e do suborno de congressistas, enfraquecendo os mecanismos democráticos de pesos e contrapesos. 

O comportamento autoritário também se manifesta no elogio à violência, no endosso a atos de violência de seus partidários, sejam contra instituições sejam contra adversários políticos, com recusa sistemática à condenação e punição dos mesmos. 

No momento em que a sociedade brasileira está imersa numa campanha eleitoral de contornos imprevisíveis, importa que nós eleitores e portanto sujeitos da dinâmica política de nosso país, saibamos diferenciar os proponentes a cargos eletivos de responsabilidade, evitando eleger figuras com perfis autoritários que representem perigo à nossa já torpedeada democracia brasileira, garantido um Estado eficiente e eficaz na busca do bem comum e não comprometido com a manutenção e reprodução das desigualdades da vida cotidiana.

(*) Professor, ex-Reitor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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