Opinião
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16 de setembro de 2022
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13:56

Cervejas panfletárias: o movimento das cervejas artesanais e suas pautas políticas (por Fernanda de Moura)

Cervejarias politizadas: um fenômeno crescente no país (Foto: Pixabay)
Cervejarias politizadas: um fenômeno crescente no país (Foto: Pixabay)

Fernanda de Moura (*)

Nas gôndolas dos supermercados, nos eventos cervejeiros e bares especializados que surgem especialmente na última década, vê-se um movimento que já não é mais novidade no país: o da cerveja artesanal. A expansão de marcas e variedades mostra um cenário de empreendedorismo que se solidifica e profissionaliza, ultrapassando as expectativas de “moda” em que muitos acreditaram que justificava as artesanais.

O Rio Grande do Sul, berço do movimento no país – a primeira cervejaria independente do Brasil foi a Dado Bier, de Porto Alegre, em 1995 – teve a colonização alemã como influência, facilitando por anos a produção das cervejas artesanais e seu vínculo com a mesma. Hoje, a cultura cervejeira fura a bolha do colonizador e estende-se a boa parte dos gaúchos, surgindo em diversas cidades como capital, região metropolitana e serra (o vinho começa a dividir os palcos, ainda que possua prioridade entre os turistas), mostrando faixas de preço que tornam-se por vezes acessíveis ao grande público, ao menos nas cervejas de entrada.

Depois de anos associada a um consumo elitista, a cerveja artesanal começa a chegar em diferentes núcleos da população, democratizando-se. E com a pluralização dos consumidores, difunde-se a cultura cervejeira também entre seus produtores. As artesanais, em toda sua pluralidade, passam a transformar o mercado cervejeiro nacional e os hábitos dos consumidores. São percebidos não somente novos alcances gustativos, mas também provocações sociais vindas de um denominador comum, o produtor de cerveja. 

E é a partir das provocações destes produtores que vem os rótulos politizados: vemos em seus nomes, slogans, ilustrações e discursos nas redes, posicionamentos ligados a movimentos sociais e críticas governamentais. Sujeitos do cenário cervejeiro nacional que utilizam em sua identidade de marca discursos panfletários.

Porto Alegre e região metropolitana, por exemplo, tem a cena cervejeira politizada marcada por cervejarias como a Sapatista, a “cerveja feita por mulher” alinhada a corrente feminista e a comunidade LGBTQAI+; a cervejaria Implicantes, de representatividade negra em um nicho preeminentemente branco; a Cervejaria Macuco, também ligada aos ideais feministas; a Cervejaria Territórios, que debate a distribuição de terras; a Zapata Cervejaria Rural, ligada a permacultura; entre outras.

Este movimento de politização que surge no cenário nacional já vem acontecendo há mais tempo nos Estados Unidos. Isto porque lá começou a chamada “Revolução das cervejas artesanais”, quando ainda na década de 1970 empreendedores decidiram investir na revitalização de receitas de cerveja esquecidas na esteira do tempo, erguendo bandeiras contra os grandes conglomerados cervejeiros ao promover os pequenos produtores, recolocando a cerveja em seu lugar como um negócio local e trazendo resultados para a própria região onde é produzida, defendendo leis de impostos justos e o fortalecimento da ideia de consumo consciente e responsável.

As dimensões do movimento das artesanais tomaram espaço e voz, e suas propostas ganharam o mundo, movimentando mercados e explorando o consumo político de apoio a produtores independentes. 

No Brasil, pode-se dizer que a intensificação da politização dos rótulos cervejeiros baseia-se em três mudanças: na popularização da cerveja artesanal a ponto de baratear seus custos e tornar-se acessível a mais pessoas; no fenômeno de humanização das marcas em que as mesmas se colocam para os consumidores cada vez mais como parte social ativa, engajada e participativa que transcende antigas narrativas comerciais; e no debate político acentuado nos últimos anos devido às mudanças sociais e culturais de lutas por empoderamento feminino, igualdade racial, identidade de gênero e orientação sexual, e das eleições polarizadas de 2022. 

Pelo país, cervejas como a Mito e Rock N’ Brau são exemplos desse posicionamento. Criada no ano de 2014 na cidade do Rio de Janeiro, a Cervejaria Mito não tinha a pretensão de ser um empreendimento. O nome, aliás, tinha a única intenção de homenagear deuses mitológicos. Com a ascensão de Jair Bolsonaro, apelidado por seus eleitores como “mito”, a procura pela cervejaria aumentou, e os idealizadores da cerveja viram a necessidade de se posicionar contra o governo de Bolsonaro, e  cada cerveja lançada passou a ganhar o nome de algum dos escândalos envolvendo o atual presidente: “Golden Shower”, “DesMOROna”, “Cova América”, “Comitiva Presidencial”, “Histórico de Atleta”, “Cidadão de Bem”, “Camarada Bozo”, “Noivinha do Aristides”, “Embaixada do Papai” e por fim, a “Tchutchuca do Centrão”. 

Já a Rock N’ Bräu Cervejaria e Hidromelaria Artesanal, também do Rio de Janeiro, lançou em 2018 a “Lula Livre”, uma Red Ale, a “Fora Boso”, uma Weiss, e neste ano a “Lula 2022”, uma Pilsen. Também foi lançada a cerveja “Tô com Lula”, da Cesta Camponesa, uma Pilsen que a cada cerveja vendida, R$ 1,00 é destinado para trabalhos de organização popular. A cerveja Terra Plana, da Suricato Ales, diz em rótulo: “Flat-earthers, fizemos uma cerveja para acordar aqueles que acreditam na ilusão de viver em uma bola-molhada giratória, conversível e recheada de fogo! Uma Mexican Pastry Stout com as pimentas do planalto de Madagascar e canela dos planos do Ceilão. Caso você não tenha percebido, esse texto contém ironia”.

Além dos posicionamentos de marca das cervejarias, também existem no cenário nacional projetos específicos que apoiam pautas sociais e tem à sua frente bandeiras de movimentos. São eles:

  • Brewing With Love Project, idealizado pela Cervejaria Octopus, que promove a conscientização e apoio a ações de suporte a comunidade LGBTQIA+;
  • Black Is Beautiful, organizado pelo estadunidense Marcus Baskerville, empreendedor negro cervejeiro. Projeto que fortalece a cultura afro e que ganhou proporções mundiais, sendo aplicado por diversas cervejarias brasileiras. 
  • Coletivo AfroCerva, criado em julho de 2020, logo após ataques racistas por meio de comentários nas redes sociais e conversas vazadas de um grupo privado do WhatsApp intitulado “Cervejeiros Illuminati” atacarem gravemente a Cervejaria Implicantes, a Sara Araújo – mulher, negra e sommeliere – juntamente com outros membros, vítimas também de racismo.
  • Rótulo Lobo guará, da Cervejaria Ruradélica em colaboração com a Cervejaria Veterana, ambas de Porto Alegre, tendo parte dos seus lucros destinados ao Projeto Mamíferos da Chapada.
  • Um brinde pela vida, idealizado pela Cervejaria Zuraffa, que destinou 50% dos lucros a pessoas afetadas pela pandemia do coronavírus.

Em meio a pandemia do Covid-19 o ambiente virtual ganhou ainda mais visibilidade e investimento. Com isso, as marcas utilizam o espaço para posicionarem-se intensamente tanto de forma comercial, para continuarem existindo, quanto de forma crítica em relação a como o país vem sendo governado. Ocorre a espetacularização da politização. As marcas selecionadas utilizam-se da lógica de que o consumo é uma forma de cidadania e que explorá-lo de forma consciente torna-se um ato político: o consumo de cerveja é utilizado para repensar o próprio consumo, assim como repensar de diversas pautas silenciadas por tanto tempo pelo racismo, homofobia, machismo, capitalismo e autoritarismo, e os novos sujeitos da cerveja artesanal narram suas identidades de acordo com suas lutas.

O engajamento com os conteúdos divulgados existe dentro da lógica de crescimento das plataformas midiáticas, e nas postagens das cervejarias politizadas, nem todas divulgavam em primeiro plano o produto, mas uma ideologia. A palavra funciona como imagem, assim como a variabilidade na elaboração dos rótulos de cervejas, por sua vez, está conectada à necessidade das cervejarias de criarem significados para os consumidores. O destinatário é construído no e pelo discurso como um sujeito engajado que se identifica com os denominadores da cerveja independente, e também aberto ao debate público acerca dos problemas de desigualdade que atingem o corpo social.

O consumidor é atingido por um volume colossal de midiatização e tende a ignorar mensagens que considera irrelevantes. Assim, utiliza-se da estética que carrega a intenção de produzir impacto no indivíduo e da palavra como imagem para manifestar o posicionamento de marca que explore o que a mesma acredita, e considerando a realidade de interação que cobra o ambiente virtual, debata e reflita sobre tal. 

Estes enfrentamentos produzem a transformação cultural como parte do reposicionamento do mercado do contexto pós-industrial. O consumidor de cervejas é o sujeito destinatário das cervejarias independentes, mas não somente ele, é também o não consumidor, o sujeito interessado nas problematizações manifestadas, aberto ao pensar e a abordar temas acerca da representatividade. 

As marcas utilizam-se da lógica de que o consumo é uma forma de cidadania e que explorá-lo de forma consciente torna-se um ato político: o consumo de cerveja é utilizado para repensar o próprio consumo, assim como diversas pautas silenciadas por tanto tempo pelo racismo, homofobia, machismo, capitalismo e autoritarismo. Os novos indivíduos da cerveja artesanal narram suas identidades de acordo com suas lutas. A palavra funciona como imagem, e a variabilidade na elaboração dos rótulos de cervejas, por sua vez, está conectada à necessidade das cervejarias de criarem significados para os consumidores. Vivenciamos o fenômeno de emergência de microcervejarias politizadas no país. 

(*) Mestra em Comunicação Social e Analista de Comunicação na Cubo Cia Cervejeira

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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