Opinião
|
11 de agosto de 2022
|
14:30

O Brasil bizarro (por Roger Flores Ceccon)

Foto: Paulo Desana/Dabakuri/Amazônia Real
Foto: Paulo Desana/Dabakuri/Amazônia Real

Roger Flores Ceccon (*)

O Brasil do agora é um Brasil bizarro. Grotesco. Bizarro no sentido coloquial do termo: estranho e esquisito. Difícil de ser explicado. É o Brasil de 2022. 

A fome avança à galope e já alcança 15%. É ano de copa do mundo. E de eleições. O preço dos combustíveis nunca foi tão alto. Do litro de leite também. O racismo e a homofobia acertam seus alvos em cheio. Todos os dias. Assassinaram à queima roupa um homem na própria festa de aniversário. Mataram porque era petista. Já são mais de 65 milhões de evangélicos. Um médico foi flagrado abusando sexualmente de uma mulher sedada durante o parto. Os militares compraram viagra com dinheiro público. E prótese peniana. Inventaram a fraude da urna eletrônica. E viramos empresários de nós mesmos. Yes, we can. Você consegue. 

Esse Brasil não é pra amadores.

O Brasil do agora também é hiper informado. Sabemos (quase) tudo. Somos vítimas da produção em massa de informações bizarras. Produzidas por nós, na ânsia de criarmos “conteúdo” a partir do que acontece no seio social. Somos independentes e digitais. Gestores da informação. E quanto mais bizarra, mais a informação se propaga. No fim, acabamos intoxicados. Sutilmente abocanhados, engolidos. O capitalismo não modula apenas os meios de produção. Adentra também a subjetividade. E o resultado é perverso.

Surtamos.

Nesse Brasil bizarro, é legítimo surtar. Como surtou Elisabeth Vogler, protagonista do filme sueco Persona (1966) [1], de Ingmar Bergman. No longa-metragem, ela surta em uma de suas apresentações – Electra, a tragédia de Sófocles – e a partir disso se isola do mundo, permanecendo em constante silêncio. Passa a ser cuidada em um hospital psiquiátrico por Alma, uma enfermeira que revela seus segredos mais carnais: um aborto e uma orgia. Podemos aventar possibilidades do porquê Elisabeth perdeu a voz. Medo de se relacionar com as pessoas ou receio de si mesma. Ela não suporta manter as aparências, ser alguém que não é. Ela tem medo da realidade.

Persona nunca foi tão atual. No Brasil do agora, muitos também perdem a voz. Temos medo da realidade e do amanhã. E às vezes se faz necessário habitar o silêncio. Muitos surtam como Elisabeth Vogler. Se retiram. Somos uma legião de pessoas tristes. Esse Brasil faz adoecer.

Vivemos também um regime social do alto desempenho, muito bem apresentado no ensaio A sociedade do cansaço [2], do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han. No livro, fica evidente o quanto estamos imersos em uma sociedade que produz depressivos e fracassados. Cansados, cujo cansaço é solitário, que individualiza e isola. Esgota.

Segundo Alan Enrenberg [3], neste mundo de agora, o que nos torna depressivos é o imperativo de obedecer apenas à nós mesmos. Acreditamos que podemos tudo. Entretanto, a depressão é a expressão patológica do fracasso do homem pós-moderno em ser ele mesmo. Pois ele acaba não conseguindo tudo. Pertence à depressão, também, a falta de vínculos, característica da crescente fragmentação e atomização do social. O imperativo do desempenho produz pessoas tristes e solitárias. 

Mas sempre há um outro lado. E o próprio termo bizarro possui diferentes sentidos. Como aquele que penetrou na língua portuguesa em fins do século XVI, vinda do espanhol bizarro, que significa garboso, nobre e generoso. Ou do italiano bizzarro, que quer dizer fogoso. Há, nestes termos, uma outra etimologia. 

Há também um outro Brasil. 

Esse outro Brasil, nobre-bizarro, é o país de Chico Buarque e Chico César, de Bethânia e Elza. De Milton Nascimento e Tom Zé, de Caetano e Gil. É o Brasil que tem SUS. Universidade Pública. Que tem carnaval e frevo. Maracatu. Cinema. Teatro e rap. Ciência. O Brasil do Arnaldo Antunes e do Criolo. Do rock. Da Amazônia. Do samba e da umbanda. Da poesia marginal. O Brasil garboso. Generoso. Potente e afetuoso. Um Brasil capaz de se olhar no espelho. E levantar.

O desafio do agora é o Brasil do amanhã. 

E que o sentido mais nobre do termo volte a prevalecer.

Notas

[1] Persona. Direção: Irgman Bergman. Suiça, 1966.

[2] Han, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. 2ª edição ampliada – Petrópolis, RJ. Vozes, 2017.

[3] Ehrenberg, Alan. Das erschöpfte Selbst. Depression und Gesellschaft in der Gegenwart. Frankfurt, 2015.

(*) Escritor e professor

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora