Opinião
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28 de agosto de 2022
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10:06

Economias combalidas: o trágico destino dos países subdesenvolvidos (por Marcelo Milan)

Desindustrialização é uma das marcas da economia brasileira nas últimas décadas. (Foto: Agência Brasil)
Desindustrialização é uma das marcas da economia brasileira nas últimas décadas. (Foto: Agência Brasil)

Marcelo Milan (*)

Como sempre, é válido alertar que a economia capitalista é um conjunto de fenômenos complexos, formada por múltiplas camadas (financiamento, tecnologia, produção, circulação, distribuição, despesas, tributação, regulação etc.) não lineares que se interpenetram e são interpenetradas por outros fenômenos intrínsecos às estruturas sociais (cultura e ideologia, política, etc..). A composição das camadas em si não é fixa em termos de instrumentos e interações quando longos períodos são considerados. E o peso de cada camada na estrutura também pode mudar dependendo de como os conflitos sociais e os fenômenos não econômicos estão projetados nelas (e esta projeção também muda). No curto prazo, as relações internas entre as camadas e seus componentes e entre estas e os fenômenos não estritamente econômicos podem mudar mais ou menos rapidamente. E ainda assim, há uma estrutura com alguma estabilidade. Desta forma, a análise econômica, mesmo quando feita de forma séria, dificilmente consegue dar conta desta complexidade de forma significativa. Isto implica e explica a reconhecida dificuldade de se fazer previsões econômicas. Estamos no final de Agosto de 2022 e ninguém sabe, e nem teria como saber, qual será o PIB de 2022. A confirmação dos chutes feitos até o momento só será possível no início do próximo ano. E mesmo assim sujeita a pequenas revisões. Nem a perfeita previsibilidade do passado é totalmente possível (mas o problema aqui é metodológico, que fique bem claro, sem relação necessária com a complexidade do fenômeno). 

Como consequência, é sempre temeroso se tentar projetar como a economia se comportará no futuro próximo. No futuro mais distante, é impossível afirmar ou negar qualquer coisa relevante. Essa característica levou Keynes a enfatizar a importância da incerteza fundamental. Então, as discussões e proposições são sempre conjecturas. Por que isso importa? Entre outras razões, porque a disputa eleitoral e política na Bananilga gera expectativas de mudanças positivas. E isso em razão de a situação econômica atual ser negativa. Mas negativa para quem? A economia brasileira no agregado está combalida, mas há filas para jatinhos entre os ricos e poderosos. Durante o pico da crise sanitária, surgia no Brasil um novo bilionário a cada dia. Crise para quem mesmo? E os sanguessugas do Estado, no próprio aparelho e no setor privado, seguem se beneficiando das inúmeras formas de transferência. É negativa para a maioria da população e do eleitorado. Por isso que a análise econômica agregada ao nível doméstico, com sua forte dose de chauvinismo, é extremamente limitada. Assim, ao se mencionar ‘economias combalidas’, entenda-se ‘condições econômicas combalidas da maioria da população’. Ao se utilizar a expressão países subdesenvolvidos, leia-se a ‘subdesenvolvimento das condições de vida da maioria da população’.

Então, a expectativa de mudança positiva é razoável? Para a minoria satisfeita, a questão obviamente não se coloca. Para a maioria, contudo, um exemplo útil, com o risco de sua particularidade não ser necessariamente generalizável, é a situação na Argentina. Depois do desempenho medíocre do neoliberalismo de Macri e suas medidas de redistribuição pró-capital da renda, legadas a Alberto Fernández via imposição do acordo com o Fundo Macabro Internacional, não houve reversão do quadro, e o presidente se depara mesmo com o aprofundamento da crise para a grande maioria em algumas dimensões, embora bem intencionado e com predisposição a pelo menos considerar a maioria. O ponto é que Fernández dificilmente poderia reverter apenas com base nas suas intenções e instrumentos de política econômica (mesmo aqueles que não tivessem sido desconfigurados pelo neoliberalismo). A expectativa de que as urnas magicamente poderiam reverter a situação econômica argentina se mostrou altamente ilusória. Da mesma forma, Macri, a tchutchuca do capital do Rio da Prata, não deveria ser responsabilizado exclusivamente pela débâcle, ou mesmo os Kirchner pelo breve soluço. Mas, para o capital, é preciso criar a mistificação ideológica de que os políticos e os ‘tecnochatos’ determinam de forma unívoca a trajetória agregada do capitalismo, e logo que os capitalistas e seus ‘tecnochatos’ não têm qualquer papel ativo, principalmente quando ela é de crise. Como eles vivem do arrasto pelo Estado, se algo dá errado a culpa é da política. Logo, se resolve tudo pela política correta. A política, todavia, apenas contribui para a intensidade da trajetória, principalmente pelos efeitos redistributivos que se traduzem em padrões de despesa, acumulação de riqueza e de pobreza, produção e nova distribuição, mas não é determinante para a direção. A economia argentina, portanto, é uma economia combalida, isto é, sem dinamismo, com produção e reprodução elevada de pobreza e fome, com baixíssimas possibilidades de reversão por governos progressistas. 

Indo mais além, a nova onda rosa vai se mostrar uma ilusão quando se atingirem as barreiras estruturais, mesmo que represente no curto prazo a afirmação da expectativa positiva no plano político com algum soluço. Ou seja, o que vale para Fernández, vale, ainda que com diferentes graus de profundidade e amplitude, para Boric no Chile, Castilho no Peru, Obrador no México e Arce na Bolívia. Petro, na Colômbia, terá o maior desafio em função da novidade. E portanto onde o potencial de frustração é maior, casado com o receio, do governo, de tentar avançar mais efetivamente na tentativa da reversão impossível e sofrer um ataque conjunto, interno e externo. Isto acaba criando espaços para a ascensão da direita fascista e a institucionalização política das milícias paramilitares quando as restrições estruturais do subdesenvolvimento se fizerem sentir com força. O resultado eleitoral não tem como definir os rumos de longo prazo destas sociedades, pois, como já escrevera Drummond, os lírios não nascem das leis. As urnas apenas indicam quem será o(a) cogestor(a) político(a) do subdesenvolvimento. Isto, desnecessário dizer, não significa colocar na mesma escala as eleições e o autoritarismo. Mas na América Latina, dada sua compulsão autoritária, esta tem sido a resposta a tentativas de avanço mínimo nos programas cíclicos de reversão estrutural, quando a ilusão demora a se extinguir e a esperança continua a dar o tom das eleições. O autoritarismo não é apenas militar. Porém, o recente autoritarismo judiciário tem se mostrado incompetente para conseguir evitar resultados eleitorais contrários aos interesses imediatos da oligarquia de aprofundar o modelo concentrador. A cadela do fascismo está sempre na CIA. Solta e de prontidão. O caso da golpista Jeanine Áñez na Bolívia não será um caso isolado. Os dominós vão tombar um a um, com a frustração que se segue à ilusão desfeita. Sem contar a própria guerra híbrida permanente contra os governos com qualquer inclinação, mesmo que mínima, a favorecer a população pobre e trabalhadora na região. Ou a própria guerra especulativa permanente contra as reservas e os ativos das economias em que há governos com qualquer inclinação, mesmo que mínima, a favorecer a maioria. 

E na Bananilga? Saindo a tchutchuquinha do centrão (covil de picaretas), além do alívio civilizatório e do súbito aumento do Q.I. médio do Praça dos Três (falsos) Poderes e da inevitável perda de popularidade do herói camarão, a recuperação econômica viria a galope? Isto é, a economia entraria em uma fase de transição de combalida para dinâmica? A prosperidade (enquanto fase do ciclo econômico) seria alcançada com o encurtamento da fase de recuperação pós-neoliberalismo e pós-pandemia, unicamente pela via da política? Embora possível pela própria dinâmica do ciclo, não se deve contar com isso. A reversão estrutural necessária para tanto, na periferia, não é alcançada por eleições, mas por crises profundas no sistema capitalista mundial. E quando aconteceu pela política, não foi pelas eleições. Valem os exemplos da Ásia: China, Coréia do Sul e Vietnã, o primeiro se aproveitando da crise estrutural dos anos 1970. Nem as duas profundas crises recentes, a financeira de 2007-2008 e a da COVID-19, conseguiram gerar tal mudança. E gerir a atual estrutura econômica combalida significa justamente não satisfazer as expectativas de mudança positiva e jogar água no moinho da reação conservadora-liberal. 

A estrutura econômica combalida funciona como um efeito de histerese, ou seja, a inércia advinda de um fenômeno econômico de duração limitada, como uma crise específica. Em termos macroeconômicos, a histerese permite rejeitar bobagens como a existência de uma taxa natural de desemprego. Mas, em termos macroestruturais, pode ir além. Neste caso, o fenômeno tem uma duração maior, secular. Na história, parece gerar uma inércia de longa duração Braudeliana, a qual inspirou a produção de Cialis® (atenção pintadores de meio-fio: viagra é démodé). Ao não conseguirem (ou poderem) avançar na reversão estrutural, as forças progressistas permitem uma contínua restauração do passado. Neste caso um país não tem futuro, pois a inércia estrutural se impõe na macro-história e nas conjunturas cíclicas que se seguem aos fracassos de reversão. Portanto, por mais pessimista que isso soe, para o subdesenvolvimento estrutural, não importa quem vence as eleições. Não é a política, estúpido! É a economia, estúpido! Já alertava Carville 30 anos atrás. E um dos principais fatores do atraso não diz respeito à manipulação de instrumentos fiscais, monetário-cambiais, financeiros, regulatórios, etc. A economia nacional, não só o governo central atual, está nas mãos de ineptos e incompetentes, com uma outra exceção. A América Latina foi ‘brindada’ pela história com uma das dinastias burguesas mais toscas que o capitalismo já produziu. De que valeram Vargas (exemplo de transformação estrutural autoritária, mas a partir da Grande Depressão) e seu suicídio, JK, cassado e ‘assinado’, Jango, deposto e assinado na mesma operação que matou JK, Lula, preso ao alimentar a esperança de mudança, e Dilma, deposta, e suas políticas para aumentar a riqueza da burguesia manufatureira? O permanente atraso agroexportador e o atual retrocesso dos serviços precários se impõem como lei férrea, trazendo em seu bojo pobreza, desigualdade, destruição ambiental, destruição científica e tecnológica, decadência cultural e destruição das instituições eleitorais, e sem o elemento criativo apregoado por Schumpeter, porque as vitórias políticas de lideranças progressistas redundaram, em algum momento, em frustração de expectativas.  

Inaugura-se, assim, após cada frustração, uma nova fase de ciclo com medidas concentradoras de renda e riqueza que reforçam a tendência estagnacionista de longo prazo. As dificuldades econômicas estruturais levam a ciclos políticos caracterizados por medida que, embora não determinem a tendência (é a economia novamente, estúpido!), isto é, a direção do movimento, influenciam no ritmo e possivelmente na amplitude e na duração do ciclo, reforçando a direção estrutural dada pelo capital. Os governos progressistas ficam, assim, de mãos atadas: não conseguem políticas de reversão secular, porque elas raramente existem, e ficam no ‘feijão com arroz’ de curto prazo que não pode confrontar a realidade estrutural. Na verdade, nos devaneios desenvolvimentistas e seu delírio manufatureiro anacrônico – e então a insistência na política de encher o “cofre” – para evitar uma expressão chula – da burguesia manufatureira com isenções, subsídios e crédito direcionado, que logo se evapora e se transmuta em ativos no mercado imobiliário de Miami. Reversão estrutural é identificada com reindustrialização, comprovando que a industrialização anterior foi revertida e que não fora enraizada ao não proporcionar a satisfação das necessidades dos grandes contingentes populacionais. Para não ficar nenhuma dúvida, vale a pena citar nominalmente o de outra foram excepcional Márcio Pochmann: “Somente outra maioria política pode ter a força de reverter o sentido de Brasil subdesenvolvido e dependente do exterior que se aprofundou desde a dominância neoliberal nos últimos tempos. Contra isso, a reindustrialização já.” (negritos adicionados). Ou então: “O futuro do país hoje depende da reindustrialização nacional. Isto não significa dizer que o Brasil deve deixar de ser uma potência agrícola.” (negritos adicionados). É possível ouvir as lágrimas de Pochmann caindo ao lamentar a quedas nos lucros industriais… E só a mágica explica a existência de uma potência agrícola sem ruralistas, e todas as consequências, neste modelo…

O fracasso deste tipo de proposta acaba gerando insatisfação e eleição de governos liberais-conservadores com traços cada vez mais fascistizantes, ou mesmo apoio para deposições de governos de esquerda, inclusive com o próprio suporte da burguesia industrial, que usa parte dos benefícios recebidos destes governos progressistas para financiar golpes e patos de borracha e filet mignon para o gado. Os governos reacionários contribuem para aprofundar a tendência estrutural e tornar a reversão cada vez mais difícil, pois o aprofundamento adquire enraizamentos que exigem um esforço cíclico cada vez maior nos diminutos períodos em que as instituições oligárquicas permitem eleições e vitória da esquerda. A finança sempre alerta os governos progressistas eleitos: medidas na direção da reversão estrutural implicam fuga de capitais e movimentos desestabilizadores que também reforçam a própria tendência. Os espasmos ou surtos esporádicos cíclicos apenas deslocam, no máximo, o nível de atividade um pouco para cima, ficando aquém do necessário para gerar uma dinâmica progressiva contínua, posto que sempre preventivamente abortada por golpes e crises políticas que se somam aos ataques especulativos. 

A lei de ferro do atraso estrutural das burguesias compradoras da América Latina é portanto o principal empecilho na superação do subdesenvolvimento. Esta lei se combina com as ‘guerras’ externas e internas para se firmar como traço permanente da região, com variações temporárias apenas, já que interrompidas sempre que necessário. A Bananilga não é exceção. As economias combalidas não estão apenas assim, mas sobretudo assim são, e dificilmente o deixarão de ser. As eleições presidenciais podem definir muitas coisas (principalmente a rejeição à barbárie fascista e seu modelo concentrador que intensifica o aprofundamento do atraso, e logo a confirmação sobre o nível médio de inteligência e autointeresse da maioria do eleitorado), mas não deve haver ilusão de que as necessárias mudanças estruturais (e isso não passa pela reindustrialização) terão início, ou que meras intenções de sugerir algo neste sentido não serão enfrentadas com deposições, cassações, quarteladas e outros golpes afins. 

(*) Bacharel, Mestre e Doutor em Economia

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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