Opinião
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30 de agosto de 2022
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07:15

Convergentes, insurgentes, divergentes (Coluna da APPOA)

Cena da série Divergente: Insurgente (Reprodução)
Cena da série Divergente: Insurgente (Reprodução)

Marcia H. de M. Ribeiro (*)

O que aconteceria se você percebesse que não se encaixa em nenhum modelo em vigor, mas que isso fosse condição para se sentir incluído numa comunidade? Ou que o padrão sustentado em sua família de origem é vestimenta que não lhe cabe bem? Ou ainda, se você corresse o risco de na hora de declarar uma pertença, descobrisse ser um Divergente? 

Esses são alguns dos dilemas vividos pelos jovens personagens da saga Divergente: Divergentes, Insurgentes, Convergentes (2014/2016) dirigido por Neil Burger. A obra cinematográfica se inspirou na trilogia distópica escrita por Verônica Roth. O roteiro do primeiro filme é da lavra da autora e de dois outros roteiristas consagrados nesse gênero ficcional: Evan Daugherty e Vanessa Taylor. Temos ficções distópicas mais recentes como O conto da Aia de Margareth Atwood. Aliás, como nota à parte, vale a leitura de Os testamentos (2019), dela também, que conta as crenças que alicerçam a teocracia em Gilead através dos testemunhos de uma Tia. Uma narrativa distópica tem essa característica de amplificar detalhes da verdade contemporânea, projetá-los no cerne da trama num futuro longínquo de um mundo imaginário.  Na obra de Roth, os personagens vivem as consequências de um regime político-social dividido em facções identitárias.

Vamos então ao filme de Burger. Os homens condenaram o planeta à ruína pelo pleno exercício de algumas de suas qualidades. Os sobreviventes residem numa cidade muralhada protegidos do exterior. Desconhecido. Inóspito. Perigoso. Divididos em cinco facções, brigam, ora de forma velada ora violenta, pelo poder para governar os homens e dominar a política. Os integrantes das facções e de um sexto grupo, os Sem facção, são reconhecidos e se diferenciam pelos elementos que compõem sua identidade imaginária: sua vestimenta, sua postura física, seu comportamento. E pelos traços de sua identidade simbólica: a história e as funções a que estão destinados para a garantia da vida e do laço social, o nome que designa o valor moral, ideal a ser cultivado e sustentado por seus integrantes. Pela geografia que delimita as fronteiras e circunscreve seu território.

As facções, por ironia ou não, utilizam como nome o antônimo do atributo moral que conduziu àquela situação social precária e ao colapso do planeta: Abnegação, Audácia, Amizade, Franqueza, Erudição. Os Sem facção representam os segregados. Sobrevivem dos restos da comunidade e da caridade da Amizade. Abnegação, despojada de bens materiais, governa tentando constranger as outras facções a se curvar a uma teocracia em curso. Audácia é formada por jovens vestidos de preto, vigorosos, destemidos e fisicamente bem-dotados, responsáveis pela vigilância e defesa da cidade, ainda que para isso precisem burlar as regras do já frágil contrato social. Os na Amizade são solidários, gregários, nutrizes. Uma comunidade agrária aparentemente distante do centro urbano em que se desenrolam os meandros da política governamental. Erudição não vai para a rua, conta com a Audácia para conter os ânimos dos cidadãos e com Franqueza como conselheira nem sempre bem-vinda. Enfim, o cenário da cidade se completa quando irrompe a violência bruta pela ruptura do pacto social pulverizado pelos discursos identitários, e a ausência da alteridade simbólica capaz de mediar as relações entre as facções. Verdadeira guerra fratricida.

Beatrice é a jovem personagem que está por declarar – após seu ritual de passagem num dispositivo biotecnológico criado para dizer quem sou eu, a que mundo pertenço – a qual facção vai se integrar. Todos os passantes estão advertidos de que podem falar na cerimônia de declaração a facção revelada pela experiência ritualística ou escolher outra segundo seu desejo. A mudança implica, de saída, despir-se da estética compartilhada em sua facção de origem para incorporar a da outra. Depois, passar por provas para atestar a passagem e validar o ato de adesão aos valores simbólicos do novo grupo. 

Ela quer sair da Abnegação para a Audácia. Precisa para isso fazer o exercício de seu desejo, bancando as consequências de uma escolha insurgente ao desígnio revelado no ritual: reunir-se aos segregados, Sem facção, Divergentes. Ou, na impossibilidade de bem encaminhar o conflito entre cumprir o desígnio, realizar seu desejo e ficar em dívida com os ancestrais, escolher manter-se no mesmo lugar Convergente, abnegada.

Em sua experiência de passagem para Audácia, Beatrice descobre ser totalmente Divergente. Portadora de todas as qualidades – abnegação, amizade, franqueza, erudição – e também de seus antônimos, a atestar tanto seu desajuste à lógica estratificada (se sou isso não posso ser também aquilo) quanto sua humanidade, divergente. 

A história provoca uma reflexão sobre os problemas causados para os personagens ao serem constrangidos a viver numa sociedade organizada por lógicas identitárias fixas, estratificadas; e o valor simbólico da divergência. Divergência como metáfora da liberdade que instaura um trânsito, uma ruptura nas fronteiras estritas das facções, na muralha real que separa a cidade do exterior; e desconstrói a verdade divergente-dejeto,

Dia desses assisti a uma das últimas entrevistas concedidas por Contardo Calligaris. Ele diz que sua utopia seria a de viver num mundo sem nações, sem passaporte, sem fronteiras. Habitado por cidadãos planetários. Me identifico com esse sonho. Muito embora desconfie que, por nosso impulso para adjetivar e assim classificar, dar sentidos, criaríamos outras caixinhas para dividir e acomodar nossos semelhantes.

(*) Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA, e do Instituto APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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