Opinião
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26 de maio de 2022
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19:35

A possibilidade de um golpe (por Céli Pinto)

Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado
Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

Céli Pinto (*)

Muito se tem falado na possibilidade de um golpe de estado dado por Bolsonaro e seu grupo, se ele perder as eleições presidenciais no primeiro turno, ou se o certame for levado a um segundo turno de enfrentamento entre ele e Lula.

A questão me parece complexa por, pelo menos, duas razões: Bolsonaro não pretende sair do poder; um golpe pós-eleições é praticamente impossível.  

Bolsonaro não tem nenhum compromisso com a democracia, com as leis, com as autoridades constituídas. Na verdade, depois de quase quatro anos, dá a clara impressão de que não entendeu nada sobre o que é ser presidente de um país. Vindo dos porões da política, foi alçado, por interesses escusos de grupos economicamente dominantes, candidato à presidência, conseguiu uma estrondosa vitória e uma posição jamais sonhada. Era o representante da direita mais rasteira, violenta e cínica moralmente. Tornou-se o homem certo quando a conjuntura tinha destruído o sistema político através da politização desavergonhada de parte do judiciário e do ministério público. Tudo com o pouco discreto entusiasmo da mídia que se encantava com o pretenso fim do Partido dos Trabalhadores no Brasil, a mesma mídia que agora se jacta de ser defensora da democracia. 

O governo Bolsonaro tem o mérito de haver desvendado duas situações não consideradas pela grande maioria dos analistas políticos: a existência de uma extrema-direita muito bem estruturada no país, mesmo que minoritária, e a prontidão dos militares, pelo menos de parte deles, para voltarem à vida política. O ex-capitão deu espaço para estes grupos chegarem ao poder e se expandirem. 

É importante enfatizar que a maioria dos que votaram nele não pertence a nenhum destes grupos. Foram eleitores de ocasião, fortemente influenciados pela propaganda antipetista, pela desqualificação constante do governo de Dilma Rousseff, pela condenação de Lula, que resultou em sua prisão, e pela crise econômica que o país sofria. São eleitores voláteis e nada garante que votarão em Bolsonaro novamente. As pesquisas, até o momento, mostram que ele perdeu boa parte deles.

Daqui até outubro, há cinco cenários possíveis para pensar as eleições presidenciais: a vitória em primeiro turno de Bolsonaro; a vitória em primeiro turno de Lula; um segundo turno entre Bolsonaro e Lula; um segundo turno entre um dos dois e um candidato da terceira via; um segundo turno sem Lula e Bolsonaro. As duas últimas alternativas são improváveis e não merecem, pelo menos por enquanto, qualquer preocupação analítica. 

Vou me deter, portanto, nas três primeiras e na possibilidade de golpe.  É razoável afirmar que a única hipótese de afastar completamente um golpe seria a vitória de Bolsonaro. Isto seria um grande desastre para o país, muito maior do que o que estamos vivendo em seu primeiro governo. Tenho poucas dúvidas de que, se for vitorioso, não terá escrúpulos de enfrentar a Constituição e dar um golpe nas instituições, mas o tema merece outro artigo. 

Bolsonaro perdedor poderia dar um golpe? Reunir forças políticas e militares e não empossar o novo presidente?  Certamente faria um grande escândalo, acusaria as eleições de fraudulentas e provocaria um clima de perigosa crise social e de segurança, estimulando seus grupos armados a irem para as ruas. Arruaças, mortes, prisões, incêndios, provocariam uma grande crise que, entretanto, não garantiria sua permanência no poder. Ao contrário, talvez acabasse forçando sua saída, com algumas garantias, para liderar de fora o movimento bolsonarista de extrema-direita.

Isto posto, estamos livres de um golpe?  Não me parece que o golpe seja a consequência inexorável na atual quadra da política brasileira, mas também seria pouco indicado não considerá-lo.  Minha hipótese é que um golpe pós-eleição com sucesso é muito pouco provável, mas outra coisa pode acontecer: um golpe preventivo, para impedir que as eleições se realizem.

Se as pesquisas no mês de agosto/setembro apontarem para uma vitória de Lula no Primeiro Turno, a construção de um cenário favorável ao golpe não é desprezível. Um golpe sempre ocorre com minorias bem organizadas e sem escrúpulos, e o governo tem uma extrema-direita a postos, bem como uma fração das forças militares dispostas a aventuras golpistas, cujo tamanho e força são difíceis de avaliar. O golpe tem de impedir as eleições, sem fechar o Congresso ou cassar ministros dos tribunais superiores, mas adiando as eleições, mantendo os eleitos em 2018 em seus postos. Isto é difícil? Sim, mas não completamente improvável de ser aceito pela maioria da Câmara dos Deputados e até do próprio Senado, na iminência de uma vitória em Primeiro Turno de Lula. As leis dão muitas brechas para identificar o perigo de uma convulsão nacional, mesmo que falsa.

Caso as pesquisas apontem para um segundo turno entre Lula e Bolsonaro, é mais provável que o ex-capitão não tente impedir as eleições, não teria nenhuma razão para não confiar em Ciro e Tebet (que parece ser a candidata ungida pela chamada Terceira Via). Eles nada farão para impedir sua vitória, pelo contrário. Ciro já deu provas disto, Simone Tebet é uma candidata de direita e, mesmo que não seja extremada, está obviamente muito mais próxima de Bolsonaro do que de Lula. A absurda manifestação da Senadora contra Dilma Rousseff, por ocasião do processo de impeachment, mostra claramente do que ela é capaz. Certamente foi um dos mais cínicos, mentirosos e mal-intencionados discursos entre os muitos que foram feitos.

Não estou me colocando como profeta de um golpe, apenas tenho a intuição de que, se ele acontecer, será para impedir as eleições, não posterior a elas. As forças democráticas não podem fazer de conta de que esta é só mais uma eleição. O que está em jogo é a oportunidade deste país reconstruir seu processo civilizatório, juntando o que ainda sobrou do período de democracia vivida a partir de um projeto mais igualitário e garantidor das liberdades.  As alianças não podem ser apenas políticas, para angariar votos. Elas necessitam, mais do que nunca, ser capazes de  garantir a realização do pleito. Ou mergulharemos por anos, talvez décadas, em um regime antidemocrático, violento, obscurantista, reacionário e de extrema-direita.

(*) Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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