Opinião
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23 de abril de 2022
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15:40

É preciso atravessar o inverno para beijar a primavera (por Glauber Gularte Lima)

Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21

Glauber Gularte Lima (*)

El silencio ha temblado por nosotros
como los pies descalzos de este invierno de pobres,
en tus brazos aún quedan rostros de amor abandonados,
después de haber amado
regresamos al fuego, la furia, la injusticia

Juan Gelman

O Brasil experimenta o paradoxo de vivenciar momentos sombrios e eletrizantes. Das catacumbas de uma ditadura de vinte anos que até hoje não acertou as contas com a história emergiram como feras esfomeadas uma matilha de adoradores da morte.

São personagens que nunca tiveram e jamais terão qualquer apreço pela democracia. Ao contrário, seus heróis venerados são alguns dos maiores criminosos que a apunhalaram para instaurar um regime totalitário, como a figura infame do coronel Brilhante Ustra. A partir da ascensão dessa figura repulsiva que hoje ocupa o mais alto cargo da república, todo direito foi relativizado e toda culpa impune dos crimes do passado foi transformada em ato de heroísmo.

O sete de setembro de 2021 se constituiu na primeira tentativa de aniquilar a ordem democrática, que não foi consumada, dentre outros motivos, porque a Faria Lima, símbolo do capital financeiro e do poder da agiotagem moderna, não aderiu ao movimento. Endossaram e financiaram a tentativa de quebra da legalidade democrática o velho latifúndio rebatizado de agronegócio, os mercadores da fé e a cúpula militar, sempre pronta para apunhalar a Constituição que deveria defender, além de outros setores conservadores.

 O bolsonarismo forçará o pé na porta da democracia até o fim, no intento de arrombá-la. Logo da afronta ao STF, concedendo a “graça” ao bandido Daniel Silveira, um velho roteiro tomou a cena. O presidente do Clube Militar, general Eduardo José Barbosa, expressando a voz da caserna, foi escalado para endossar a atitude criminosa e irresponsável de Bolsonaro, atacando pesadamente o STF, ao afirmar que as togas “não serviriam nem para pano de chão”. De parte do governo, o general Heleno, ministro do Gabinete da Segurança Institucional, o mesmo que coordenou um massacre na “Missão de Paz” no Haiti, saiu afirmando que desrespeitar a decisão do presidente abriria as portas para a “insegurança jurídica”.

São ameaças explícitas à legalidade democrática, que não podem ser toleradas. Todas as forças democráticas do país precisam se unificar para preservar a Constituição dos ataques dessa verdadeira organização criminosa que tomou de assalto o aparato estatal como se propriedade privada sua fosse. 

Eles buscam imobilizar as forças de resistência com a ameaça constante de um golpe pairando no ar, como uma sinistra possibilidade que incute o medo, que é o maior inimigo do ser humano. Será que tantos antepassados nossos, ao longo de séculos, se ergueram como gigantes enfrentando inimigos brutais para nos deixar um legado de resistência e luta que não servirá para nada?

Não existe outro caminho para as forças de esquerda, progressistas, para o centro democrático, que não seja enfrentá-los e lhes impor uma derrota que os devolva para a insignificância de onde saíram. E para isso a campanha de Lula terá que chamar o povo para as ruas, para que a democracia seja defendida em cada esquina, em cada praça, em cada ruela das favelas deste país. 

Não é de graça que eles atacam a história e a cultura, falsificando uma e desprezando a outra. Quando olhamos pelo retrovisor, enxergamos as pegadas que o povo brasileiro deixou sobre esta terra. E esses sinais evidentes jamais indicaram desonra e covardia, mas grandeza moral e heroísmo. 

Não existe um único episódio nos mais de cinco séculos de história deste país onde o povo pobre e excluído não tenha imposto resistência à tentativa de escravizá-lo e lhe sujeitar à dominação cruel. Talvez o mais heroico desses exemplos seja o Quilombo dos Palmares, erguido na Serra da Barriga, na antiga Capitania de Pernambuco, que durante um século resistiu e sobreviveu aos ataques dos dominadores escravistas da época colonial. 

Estamos no outono, uma leve e simbólica estação de transição, cujas brisas logo se transformarão em ventos tremulantes. E ainda teremos que atravessar o inverno com suas profecias de apocalipse e seus lamúrios funestos para chegar à estação da explosão da vida e da esperança. Nosso encontro com o futuro será no berço colorido da primavera, quando as efêmeras flores dos ipês cairão sobre os caminhos por onde pisará firme o povo brasileiro na busca dos direitos que lhe foram arrebatados.

(*) Glauber Gularte Lima é professor

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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