Opinião
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15 de março de 2022
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07:15

Sinais: a Roda dos Expostos e as Safe Haven Baby Boxes (Coluna da APPOA)

Roda dos Expostos. Igreja da Congregação das Religiosas do Sagrado Coração de Jesus (1742). Igarassú (PE) (Arquivo pessoal)
Roda dos Expostos. Igreja da Congregação das Religiosas do Sagrado Coração de Jesus (1742). Igarassú (PE) (Arquivo pessoal)

Marcia H. de M. Ribeiro (*)

Sinais são menos que texto, escrito ou falado. São melhor que ausência de qualquer coisa a que se apegar. Sinais era o nome dado aos pequenos objetos deixados com alguns bebês colocados na Roda dos Expostos em Portugal. Aliás, foi de lá que, no século dezenove, veio a ideia de instalar por aqui o mesmo mecanismo para receber de forma anônima os bebês que não se podia criar. A Roda parou de funcionar nos anos 1940. Por um tempo ela esteve exposta (que ironia) para visitação num dos museus de Porto Alegre, mas foi consumida. Virou comida de cupim. Há uma réplica no Museu da Santa Casa para quem tiver interesse em conhecer parte dessa história. Também há outros registros escritos, alguns no Arquivo Histórico de Porto Alegre, e em livros. Suficientes para se ter uma ideia também do alto índice de mortalidade infantil na Casa dos Expostos. Ela foi a precursora das imensas instituições de abrigamento quando a tutela das crianças abandonadas passou ao poder do Estado. E assim continuamos sem Roda por aqui. Por aqui.

Há cerca de vinte anos a Roda dos Expostos renasceu nos Estados Unidos da América através de uma organização da sociedade civil, sob a proteção da lei do parto anônimo, com o nome de Safe Haven Baby Boxes. A concepção da caixa é semelhante à da Roda. O bebê é colocado de forma anônima num lugar fisicamente protegido para ser entregue à adoção. Comumente instaladas em prédios do corpo de bombeiros, são dotadas de tecnologia sofisticada: alarme silencioso para avisar a chegada de um bebê, e berço aquecido. No entorno do equipamento há avisos e um número de telefone, similar aos 0800 daqui, para apoio e orientações. Caixas desse tipo são encontradas em alguns países dos outros continentes. Segundo os dados divulgados pelas organizações em seus sítios na Internet, há mais caixas para bebês que crianças deixadas nelas. 

Os Sinais.

Eles me evocam experiência que não aconteceu no tempo da Roda, tampouco durante a vigência de legislação obsoleta sobre o direito infantojuvenil. Os guardiães reclamavam a alteração judicial do registro de nascimento para retirar do campo observações que, o agora adolescente, fora nomeado “exposto” deixado “em uma caixa”. A caixa, alguns objetos e o local onde fora encontrado eram os Sinais, vertidos em texto, na certidão. Nada mais. O adolescente queria saber aonde aqueles Sinais poderiam levá-lo para conhecer a história que o precedeu, as causas do abandono daquela forma. A frase injúria presente na certidão compunha para ele o elemento mínimo da mitologia sobre sua origem. Antes que apagar ele queria saber mais. Onde podia procurar. Quem tinha guardado as informações. A polícia? A justiça? O hospital? E planejava voltar à cidade de nascimento para, através dos Sinais, encontrar os testemunhos que o ajudassem a dar sentido ao enigma sobre sua origem. Substituir o vazio de palavras por referências, pois um vazio emoldurado por puro enigma faz claudicar também a fantasia se ela não encontra suporte. 

No Brasil não existe previsão legal de parto anônimo. Houve uma tentativa legislativa para instituí-lo em 2008. Não colou. Não porque as mulheres não tenham direito a reconhecer um impossível na radical experiência da maternidade. Entregar um bebê para outrem, para adoção, não é crime. Abandonar à própria sorte, ou para a morte, sim. Mas isso não é prática corriqueira por aqui. Embora quando aconteça vire manchete, e sirva como combustível para radicais discursos moralizantes e culpabilizadores. 

Uma mulher pode entregar um bebê em adoção. As insuficiências de toda ordem, em geral econômicas, se destacam entre os motivos para o ato. Uma criança tem o direito a conhecer suas origens – aliás, existe um procedimento judicial para isso, pois por aqui o Estado é também o fiel guardião dos Sinais e da história, e está obrigado desde a promulgação do ECA a preservar esses registros antes incinerados – por isso também o princípio do anonimato não vigora aqui. Para que não se institua um silêncio perpétuo que deixe a moldura vazia para sempre.

É verdade que na falta de um texto pode-se tentar narrar uma história partindo dos Sinais – ainda quando seus traços sugiram um passado trágico, uma violência – como queria o adolescente a quem primeiro chamaram “exposto” num tempo em que da Roda restara história escrita.

(*) Psicanalista, Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA, e do Instituto APPOA

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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