Opinião
|
7 de março de 2022
|
22:17

Implodiram um tempo que não voltará (por Mauri Cruz)

Prédio da Secretaria de Segurança Pública foi implodido no domingo (6). (Foto: Itamar Aguiar/Palácio Piratini)
Prédio da Secretaria de Segurança Pública foi implodido no domingo (6). (Foto: Itamar Aguiar/Palácio Piratini)

Mauri Cruz (*)

No domingo (6), implodiram o antigo prédio da Secretaria de Justiça e Segurança (SJS) e com ele, uma parte importante de nossa história. A transformação daquele prédio em sede da SJS foi uma ação do então Secretário José Paulo Bisol para materializar um dos objetivos estratégicos do Governo Olívio que era integrar técnica e operacionalmente as forças de segurança numa política cidadã e de direitos humanos. Tempos revolucionários aqueles onde se ousava fazer política de segurança sem violência, tendo como prioridade à dignidade humana e não a propriedade privada. 

Mas não pensem que foi fácil o caminho trilhado até a inauguração do chamado CIOSP – Centro Integrado de Operação de Segurança Pública. Para conseguir efetivar a integração desejada, Bisol precisou mexer com poderes entronizados na segurança pública desde a ditadura militar. Foi necessário enfrentar os corporativismos de cada uma das instituições que se viam como a mais importante e mais preparada, em detrimento das demais, mexer com as estruturas de poder velado, quase paramilitares, que se encastelavam no poder institucional e, claro, sofrer as pressões do tradicional tráfico de influências de parlamentares que mantinham tutela sobre parcelas significativas das corporações públicas.

Infelizmente, é preciso reconhecer que também foi necessário enfrentar parcela do próprio PT gaúcho que via, na ousadia do seu Secretário de Segurança, um risco eleitoral para o partido. Um raciocínio imediatista que, priorizando o cálculo eleitoral, pretendia renunciar a única medida capaz de promover transformações estruturais no aparelho do estado na área da segurança. É com tristeza que recordo que havia resistência até mesmo dentro do próprio Governo. Senão de forma declarada, mas às vezes travestida de entraves burocráticos, exigências de pareceres e mais pareceres, articulações internas para procrastinar decisões e a sempre alegada falta de recursos. Havia também uma questão delicada: onde instalar a sede do CIOSP sem gerar conflitos entre as próprias corporações. Era preciso um espaço neutro, por isso,  nem o prédio do Estado Maior da Brigada Militar ou o Palácio da Polícia atendiam a este critério. A procura estendia-se por meses.

Há época, o novo DetranRS, criado pelo ex-Governador Antônio Britto, alugava uma sede na Rua Sete de Setembro. Aliás, a história desta sede um dia precisa ser esclarecida. O prédio havia sido construído com recursos públicos da CORSAN e, meses depois, foi vendido à particulares que, num passe de mágica, conseguiram alugá-lo para o próprio Estado e, pasmem, com valores de aluguéis que praticamente se igualavam a parcela do financiamento adquirido no Banrisul para a compra do imóvel. Jogada de mestre, dirão alguns. Na verdade, exemplo da famosa política de privatização do Governo Britto, ótima para os agentes do mercado, péssima para o povo gaúcho.

Foi neste ambiente que o DetranRS, órgão ainda ligado à Secretaria de Justiça e Segurança, se ofereceu como alternativa ao Secretário Bisol para a aquisição do prédio da extinta RFFSA, visando reformá-lo e, por assim dizer, materializar de forma definitiva a integração entre a Brigada Militar, o Corpo de Bombeiros, a Polícia Rodoviária Estadual, a Política Civil, a Superintendência de Serviços Penitenciários, o Instituto Geral de Perícias e o próprio DetranRS, tudo sob o comando do Secretário de Justiça e Segurança através do CIOSP.

Na condição de Presidente do DetranRS [1], órgão que efetivamente adquiriu o prédio, liderei pessoalmente todo processo de compra, reforma do imóvel e da aquisição dos equipamentos necessários para sua instalação e inauguração, efetivada em 05/07/2002 como símbolo de um projeto político de segurança de longo alcance.

Neste processo há uma curiosidade. Ao encaminhar a efetivação da troca de propriedade do imóvel da União para o Estado, foi descoberto que o terreno, na verdade, havia sido permutado entre o Estado e o Município em troca da área onde está instalada a Rodoviária de Porto Alegre. No entanto, a transferência de propriedade nunca havia sido registrada. Esse fato inusitado, resultou que, tecnicamente, o DetranRS havia adquirido para o Estado um bem que, na prática, ainda era dele. Foi preciso um longo processo de trocas de documentos para que, antes da efetivação da compra, a permuta fosse efetivamente concretizada para, só assim, concluir-se a transferência.

Importante ressaltar que a integração em desenvolvimento não era apenas física, mas de reestruturação das competências, dos protocolos e, em especial, da integração da inteligência e da tecnologia. Uma parte importante da integração esteve centrada na mudança de mentalidade, em especial, de uma política de segurança que age pela força e não pela inteligência. Política esta que não é resultado do pouco conhecimento das polícias, mas da decisão de só agir quando for de interesse das próprias corporações. Desmantelar o poder paralelo e constituir um verdadeiro poder público, cidadão e de defesa dos direitos fundamentais era o objetivo por detrás da integração defendida pelo Secretário Bisol. E ele conseguiu.

O teste desta nova política de segurança foi o sequestro com reféns de uma lotação na Av. Osvaldo Aranha. Nas palavras do próprio Secretário, foi a integração, a técnica, a paciência e o real objetivo de buscar uma solução pacífica que permitiu que a área da segurança pública resolvesse o caso sem violência e sem vítimas. De acordo com Bisol, a solução para o sequestro importou uma ruptura dos preceitos doutrinários de conduta policial, enfatizando que o episódio explicita que a política do governo Olívio Dutra estava produzindo resultados.

Numa entrevista dada em 27/12/2002, já no processo de encerramento do mandato de Secretário, Bisol fez um balanço positivo das mudanças promovidas. Segundo ele, a centralização da Secretaria e dos comandos da Brigada Militar (BM), Polícia Civil (PC), Superintendência de Serviços Penitenciários (SUSEPE), Instituto-Geral de Perícias (IGP) e Departamento Estadual de Trânsito (Detran) num único prédio foi uma conquista histórica da segurança pública gaúcha. Importante recuperar suas próprias palavras: “Quando assumimos a SJS, em 1999, encontramos as instituições policiais fragmentadas, estilhaçadas. Cada pedaço estava em um lugar. A comunicação era precária. O novo complexo da segurança facilitou a convivência entre os comandos. A integração promoveu mais agilidade, praticidade e celeridade nas ações e decisões. Hoje, os dirigentes de cada órgão participam da elaboração das políticas de segurança”, enfatizou, concluindo que não acreditava que as instituições voltariam às suas antigas instalações, o que realmente não aconteceu.

Passados 20 anos, assistimos pelo Brasil a fora a proliferação de milícias armadas até os dentes, em conluio com o crime organizado, muitas vezes organizadas por dentro da própria institucionalidade, com a ousadia de ameaçar publicamente os poderes constituídos em total desrespeito ao estado democrático de direito. Sem comando, sem política de segurança, sem respeito aos direitos individuais, com chacinas e violência contra a população negra, essa realidade faz nos darmos conta da mente brilhante e de longo alcance do Secretário Bisol.

Aquela política de segurança foi encerrada em dezembro de 2002, com a derrota do Governo Olívio e nunca mais vimos nenhuma liderança da área propor mudanças tão profundas na política de segurança. A demolição do prédio da SJS encerra uma história que não será repetida, mas que deve ser lembrada pela ousadia e visão de futuro daquele que nos liderou em tempos difíceis com esperança e coragem, sem perder a ternura que lhe era tão peculiar. 

Nota

[1] Não posso me furtar de trazer aqui os nomes de pessoas fundamentais nesse processo, com o Secretário Adjunto da SJS, Lauro Magnago, a Chefe de Gabinete da SJS, Isabel Freitas, o Secretário Adjunto da Fazenda, Odir Tollonier, o Diretor Administrativo do DetranRS, Flávio Maia, o Diretor Técnico do DetranRS, Renato Rhoden, o Ten. Coronel Martin da Brigada Militar, Ayrton Michels à época a frente da SUSEPE, José Araújo, Chefe da Polícia Civil e João Luiz Corso do IGP.

(*) Advogado socioambiental, ex-presidente do DetranRS, membro da Diretoria Executiva da Abong, do Conselho Diretor do CAMP e do Instituto IDhES, sócio da Usideias Consultorias

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora