Opinião
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17 de março de 2022
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19:04

A elitização do futebol mata a cultura que o construiu (por Joana Berwanger)

Brasil enfrenta o Paraguai pela Copa do Mundo de 1950. Foto: Reprodução
Brasil enfrenta o Paraguai pela Copa do Mundo de 1950. Foto: Reprodução

Joana Berwanger (*)

“Linda viagem, a que havia feito o futebol: tinha sido organizado nos colégios e universidades inglesas, e na América do Sul alegrava a vida de gente que nunca tinha pisado numa escola”

Eduardo Galeano, Futebol ao Sol e à Sombra (2004).

É um impulso primitivo. Uma necessidade irracional, que aflora em vontade e agito. Sua simplicidade faz com que nos unamos a desconhecidos por puro prazer. Basta alguns chinelos e algo que aguente alguns bons chutes. Seja em uma rua, um corredor, um terreno mal capinado, uma quadra. O campo está pronto, e o primeiro lance faz o esporte correr no sangue daqueles que o constroem e dos que o vêem.

Não se sabe como e nem quando o futebol surgiu. Há quem diga que todas as culturas ao redor do mundo têm alguma raíz. Efetivamente, tomou forma no norte europeu no século XVII. No Brasil, começou sua história no final do século XIX, trazido por Charles Miller, filho de ingleses. Cresceu nas periferias, nos campos e onde houvesse vontade de chutar a bola improvisada. O futebol tornou-se uma linguagem universal que caminhava entre diferentes territórios sociais.

Mais de um século depois da chegada ao Brasil, o legado de Miller representa hoje o esporte mais popular do país, sendo praticado em qualquer canto, beco ou ruela. Não à toa, a acessibilidade da prática futebolística justifica a ascensão de tantos jogadores de origem periférica. O esporte se tornou parte da cultura popular do país desde sua chegada, fato que levou o Brasil a se tornar o maior campeão de Copas do Mundo, criando uma simbologia internacional entre a prática e o território latino-americano.

Em 16 de julho de 1950, o Estádio Maracanã, no Rio de Janeiro, recebeu 200 mil pessoas para o jogo que traria a taça da Copa do Mundo ao Uruguai, em cima do Brasil. O público representava cerca de 10% da população carioca da época. Os ingressos para a partida variavam de preço, sendo o valor de um deles Cr$ 600***, o equivalente, hoje, a 20 centavos de real. À essa altura, o esporte já estava internalizado na identidade do povo brasileiro, que concretizava o Brasil como dono do futebol mais bonito do mundo.

A virada do seguinte século, no entanto, não somente marcou a troca de milênio, como também o início das mudanças estruturais no ambiente futebolístico. Com a ascensão exponencial do capitalismo em escala global, a lógica de espetacularização se alastrou em diferentes setores sociais onde fosse encontrado espaço para desenvolvimento de um sistema mercadológico. O futebol foi um deles.

Dez anos antes da realidade abocanhar o Brasil de vez, Eduardo Galeano já identificava o veneno do capital empresarial destruindo lentamente essa cultura popular. As partidas, que recebiam um público que costurava diferentes classes sociais, se tornaram um espetáculo mercadológico. Mas, afinal, quem são os que desfrutam de tais injeções financeiras?

O processo de arenização dos estádios no Brasil e a concretização da elitização no futebol latino-americano começa em razão da Copa do Mundo de 2014. Reformas milionárias, estruturas colossais, clubes-empresas, padrões FIFA. Apresentada oficialmente a lógica de espetacularização, bastava somente o tempo para que o que antes unia povos por devoção, começasse a segregar por exploração financeira.

Considerado um dos negócios mais lucrativos do mundo, hoje isola aqueles que o construíram, distanciando-se cada vez mais de sua identidade popular. O valor dos ingressos, do transporte e da alimentação fez com que o futebol se tornasse um lazer para poucos acompanharem. Cada vez mais, o povo que popularizou o esporte na América Latina se via acompanhando o futebol através da televisão, e não mais no ambiente festivo dos estádios.

Aliás, não mais tão festivos. O processo de elitização passa não somente pelo distanciamento do povo, como também pelo seu silenciamento. As arquibancadas deram espaços para cadeiras numeradas, reservadas por preços inacessíveis às classes populares. O que resta de canto das torcidas são os espaços que ainda resistem das torcidas organizadas, que hoje passam por um processo de criminalização.

Esse processo se tornou uma realidade irreversível. O dinheiro injetado no mercado esportivo bate recordes a cada semestre, seguindo a lógica que o contexto capitalista impõe. Jogadores de alto nível e seus empresários recebem salários que destoam da realidade da maioria dos setores da sociedade, e não à toa a profissão tem sido cobiçada por tantos jovens.

É fato: as classes trabalhadoras não apresentam um potencial de consumo que supra a fome deste novo grande mercado. Jogadores que cresceram em periferias acompanhando o futebol do povo, e que hoje se vêem dentro de campo, já não devem mais se reconhecer no público das arenas. Cada assento vazio durante as partidas carrega o peso desse processo e conta com a presença do espectro da cultura popular que tanto foi sufocada nas últimas décadas.

Acontece que, sem o povo, o futebol brasileiro já não é o mais bonito do mundo. Em suas origens, foi construído através de uma arte de dança, onde jogar bola e torcer aguerridamente era nada mais que uma demonstração de amor. Hoje, já “não é organizado para ser jogado, mas para impedir que se jogue”**. A lógica capitalista nesse sistema precisará voltar atrás e abrir mão do lucro como caminho, já que, em sua realidade imposta, de nada adiantará o espetáculo sem plateia.

** Trecho retirado do livro Futebol ao Sol e à Sombra, de Eduardo Galeano (2004).

Publicado originalmente em O Pasquim Colorado

(*) Joana Berwanger é editora e repórter d’O Pasquim Colorado. É jornalista formada pela PUCRS, fotógrafa e pós-graduanda em Mídia, Política e Sociedade pela FESPSP. Colorada antes mesmo de se entender por gente, foi colocada no mundo do futebol pelo pai e pelo avô.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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