Opinião
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23 de novembro de 2021
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07:34

O primeiro absorvente a gente nunca esquece¹ (Coluna da APPOA)

Bolsonaro vetou distribuição gratuita de absorventes. (Freepik)
Bolsonaro vetou distribuição gratuita de absorventes. (Freepik)

Marcia H de M Ribeiro (*)

Nos primeiros anos de trabalho num juizado da infância começamos a receber a Ficha de comunicação do aluno infrequente – F.I.C.A.I. (abreviatura que carrega um voto nem sempre viável), que era remetida pela escola ao Conselho Tutelar para tomar outras providências. Quando a situação persistia, a ficha virava um procedimento judicial, por fim remetido à equipe técnica. A demanda, quase sempre, era para averiguar as causas do absenteísmo escolar e trabalhar com a rede de proteção psicossocial para criar as condições mínimas para a volta da criança ou do adolescente à escola. Algumas vezes não se tratava de uma questão escandalosa a impedir o retorno. Eram detalhes para quem via de fora. Detalhes grandiosos para quem os experienciava no corpo próprio.

A ficha de Madalena (nome fictício) descrevia uma situação curiosa e eloquente. Tinha sido uma aluna alegre, participativa e mantivera ótimo desempenho até começar a faltar às aulas no inverno daquele quinto ano. Ninguém precisava ir atrás. Ela sempre retornava depois de alguns dias de ausência que se repetiam todos os meses. O entristecimento e o retraimento no tempo que antecedia aquele período chamou a atenção dos professores, e houve suspeita de ser vítima de toda sorte de violências em casa.

Madalena tivera a menarca naquele inverno. Inquietava-se ao sentir o ventre inchado e um desconforto nas costas. Tinha medo que o sangue manchasse sua única calça como acontecera na primeira vez durante o recreio. Fora alvo da curiosidade dos colegas, todos menores que ela, que fizeram um falatório sobre estar doente, e apontavam sua roupa manchada. Os mais velhos olhavam e riam. O íntimo vazado ao público. Sentia-se alvo de olhares curiosos perturbadores a devolver-lhe uma imagem desconhecida. Então ficava em casa “naqueles dias”. Não tinha absorventes. O sangue que teimava descer como chaga era insuficientemente aparado por trapos de roupas dos irmãos menores que depois nem para aquela intimidade serviam. E lavava escondido na sanga gelada aquela vergonha. Madalena perdia as aulas, o convívio, a infância e o sangue ao mesmo tempo. Padecia do desconcerto do corpo infantil na transição para o corpo púbere adolescente em solitário silêncio.

Precisou falar do sofrimento também para descobrir a existência da caixa de primeiros socorros da escola que, embora não recebesse absorventes higiênicos por não fazer parte da lista oficial de recursos, os tinha por doação de solidárias mulheres de sua comunidade.

A lembrança dessa Madalena e seu padecimento voltam aqui em texto depois do indefensável veto presidencial ao artigo que prevê a distribuição gratuita de absorventes para uma parcela da população feminina inserida no Programa de proteção e promoção à saúde menstrual. Também sabem as relatoras da lei que o primeiro sutiã a gente até pode esquecer, nunca as consequências da falta de um absorvente na puberdade.

[1] Desde o final dos anos 1980 ficou famosa a frase criada por Washington Olivetto para a propaganda, em forma de história curta sobre o corpo púbere feminino, do sutiã fabricado para este público: “O primeiro Valisère a gente nunca esquece”. Logo, transformada em bordão para as mais variadas situações.

(*) Psicanalista, Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e do Instituto APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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