Opinião
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26 de outubro de 2021
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07:35

Indiferença: entre o sangue, o osso e a letra (Coluna da APPOA)

Garimpo ilegal em terra indígena na Amazônia. (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Garimpo ilegal em terra indígena na Amazônia. (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr (*)

Freud certa feita disse que o avesso do amor não é o ódio e sim a indiferença.

De modo geral, tendemos a concordar que o gesto amoroso é pulsão de vida, enquanto o ódio visa à destruição, ao ataque ao simbólico e à destituição do outro. Apesar das particularidades desses sentimentos e de suas implicações distintas no laço social, pode-se dizer: são afetos que tocam no narcisismo de cada um; sendo assim, as suas fronteiras não são tão claras. Pelo contrário, às vezes, a passagem do suposto amor para a encarnação do objeto a ser destruído pode ser mero detalhe. Logo, além da necessária distinção entre amor e ódio, existe também o amórdio. 

Nos últimos anos, tornou-se imprescindível falar do ódio disseminado por essa política devastadora, desumana e pré-moderna. Como tantos outros, assumi a responsabilidade de escrever artigos com o propósito de transpor tal lógica da destruição. Certamente, precisamos continuar falando disso. Entretanto, neste momento, urge pensar sobre a indiferença, mesmo porque ela pode ser mais danosa ainda do que o ódio. Parece absurdo? Sim, mas há explicação, pois, no ato de odiar, ainda que às avessas, existe certo traço de reconhecimento do outro; na indiferença, não. 

Talvez uma imagem possa ajudar nesta reflexão. Eu assistia a um debate quando o entrevistador mostrou aos convidados aquelas fotografias de pessoas na fila em busca de restos de ossos para fazer um caldo, uma sopa, ou qualquer coisa que pudesse matar a fome e, quem sabe, por distopia, resgatar alguma lembrança de refeição digna. Um dos participantes, ao ser questionado se tinha algo a dizer sobre aquelas cenas estarrecedoras, pois, até então, a sua postura de indiferença parecia demonstrar que aquilo não lhe dizia respeito, responde: “Elas estão buscando ossos porque querem. Poderiam não se submeter a isso. São escolhas da vida”. 

Espero que você ainda fique chocado ao ouvir tamanho absurdo. Mas, alguém poderia dizer, temos testemunhado tanta barbárie que muitas coisas nos escapam e, até mesmo por defesa, às vezes, ficamos anestesiados. Plenamente compreensível, no entanto naturalizar o absurdo nos joga numa espécie de apatia perigosa, pois fragiliza a nossa capacidade de indignação. Como alguém pode afirmar tal coisa? Qual a nossa reponsabilidade em silenciar diante de tamanha indiferença? Essa fala seria a arrogância típica da ignorância em relação aos dilemas da realidade alheia? Ou a manifestação do clássico sadismo capaz de humilhar o outro a ponto de atingir o seu pudor, sem qualquer compaixão. Muitos poderiam dizer “não se trata disso, nada pessoal, afinal o entrevistado expressa tão somente a forma do pensamento neoliberal, defensor das supostas liberdades, no qual cada individuo é livre para fazer suas escolhas na concorrência do mercado das meritocracias”. Como sabemos, infelizmente, alguns pensam que aqueles que se encontram naquela fila estão lá em função de sua incapacidade de ser “empresários de si” bem-sucedidos. 

É realmente incrível: quando parece que já estamos calejados o suficiente, novamente, somos surpreendidos, de forma que o alerta precisa ser acionado para resgatarmos a nossa compaixão em vertigem diante de tempos sombrios. Na mesma semana, a impensável ministra da mulher, da família e dos direitos humanos dizia que devemos escolher entre o dinheiro destinado à vacina ou o absorvente para essas mesmas mulheres em vulnerabilidade social que estavam na fila do osso, desprovidas do direito de receber do governo um mínimo de dignidade. Essa indiferença cínica face ao sofrimento do outro joga aqueles que se importam num lugar entre o sangue e o osso. 

A lógica perversa dessa economia macabra leva à morte. O que eles diriam da notícia de João Pedro Pitombo, publicada na Folha de 15 de outubro de 2021, ao revelar o corpo de uma “criança yanomami desaparecida após ter sigo sugada e cuspida por draga de garimpo”? Ora, a estupidez da indiferença chegou a tal ponto que é possível imaginar: “crianças de 5 e 7 anos não poderiam se banhar no rio e atrapalhar os pobres garimpeiros empenhados no crescimento da economia”.  

No esforço diário de não sucumbirmos a essa melancólica dor, respondemos com corpo, alma e letras, não desistindo, assim, de sermos gente. Afinal, quem não se colocou minimamente no lugar do outro diante daqueles ossos, quem não se consternou com aquelas mulheres que usavam papel higiênico, jornal e até miolo de pão como absorventes, ou ainda, quem não se comoveu com a dor dos índios que perderam suas crianças por essa draga assassina está desistindo de ser gente. Quando isso ocorre, pode-se sugar o outro e cuspi-lo a qualquer momento.

É tocante a fala de Rosângela Sibele, 41 anos, detida por furtar comida para alimentar os cinco filhos, tendo sua prisão revogada pelo ministro Joel Paciornik, do STJ, na quarta dia 13. Logo após ter sido libertada, ela diz: “meu grande sonho é ser gente. Eu ainda não sei o que é isso, não sei o que é ser mãe, filha, irmã […] Quero pedir perdão para minha família e cuidar dos meus filhos”. Acolho a verdade de suas palavras e reconheço o quanto elas são um grito de desespero que clama por consideração aos outros. Fica a esperança de que aquele entrevistado, ao ouvir Rosângela, algum dia, possa querer ser gente. 

Ao escrever essas linhas, eu estava embalado pela voz de Chico Buarque em Anos dourados, bela canção, composta em parceria com o amigo e maestro Tom Jobim. Achei que precisava terminar a coluna falando de amor, talvez porque ali somos todo Marias: lutamos para dar de comida aos nossos filhos, sangramos quando nos importamos com os outros, não somos indiferentes. Amamos. 

Em tempo, quem gosta do brilhante poeta, fica a dica de leitura do romance “Parece dezembro”, de Mario Feitosa, publicado pela Editora Nova Fronteira em 2019. Baseado em versos de Chico, Maria está em permanente reconstrução da vida e de seus descompassos, mas luta para não se deixar morrer. 

Enquanto nos importamos com a dor dos outros, a luta vale a pena. Segue a letra, mas, por favor, escutem a música, lembrem-se: É desconcertante rever o grande amor…

Parece que dizes

Te amo, Maria

Na fotografia

Estamos felizes

Te ligo afobada

E deixo confissões

No gravador

Vai ser engraçado

Se tens um novo amor

Me vejo a teu lado

Te amo?

Não lembro

Parece dezembro

De um ano dourado

Parece bolero

Te quero, te quero

Dizer que não quero

Teus beijos nunca mais

Teus beijos nunca mais

 

Não sei se eu ainda

Te esqueço de fato

No nosso retrato

Pareço tão linda

Te ligo ofegante

E digo confusões no gravador

É desconcertante

Rever o grande amor

Meus olhos molhados

Insanos, dezembros

Mas quando me lembro

São anos dourados

Ainda te quero

Bolero, nossos versos são banais

Mas como eu espero

Teus beijos nunca mais

Teus beijos nunca mais

(Tom Jobim e Chico Buarque) 

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Instituto APPOA, doutor em Psicologia Social e Institucional – UFRGS, autor dos livros Perversões: o desejo do analista em questão. Curitiba: Editora Appris, 2019 e Ensaio sobre as pedofilias. São Paulo: Escuta, 2021.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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