Marcia H de M Ribeiro (*)
Entonces comprendí lo que ya sabía: lo que podemos imaginar siempre existe, en otra escala, en otro tiempo, nítido y lejano, igual que en un sueño.
Ricardo Piglia – ‘El último lector’
Logo no início quase ouvimos Asger dizer, uma e outra vez, para alguém em apuros do outro lado da linha telefônica: a culpa é sua pelo que está lhe acontecendo. Parece advertir que, talvez mais para si mesmo, se seu desejo o levou até aí, então, vire-se.
Depois ficamos retidos com ele na sala enquanto a história de um sequestro se desenrola noutra cena, distante dos nossos olhos. As palavras, os silêncios, a respiração, os ruídos de fundo dando visibilidade ao invisível. Imaginamos.
Culpa, filme dinamarquês de 2018, está disponível nas plataformas de filmes sob demanda, também sob o nome de O Culpado (2020) na versão estadunidense. O primeiro recebeu prêmios de melhor roteiro e melhor ator em festivais do cinema europeu, e foi indicado para concorrer ao Oscar de melhor filme em língua estrangeira. Escrito por Gustav Möller, que também o dirigiu, e por Emil Nygaard Albertsen, conta também a história de um policial deslocado das ruas para atender aos chamados telefônicos do serviço de emergência de Copenhague.
Embora a tradução literal do título seja a dada ao segundo filme, culpa parece uma escolha justa. Ela é um dos grandes personagens incorpóreos da história cuja presença-ausência sustenta e dá o tom da trama. Além disso, sabe-se bem que nem todo culpado sente culpa; tampouco o “inocente” está livre dela.
Resumido assim o argumento, para evitar antecipações que arruinariam o desfecho para os que ainda não o assistiram, pode parecer mais uma versão clichê dos filmes do gênero suspense policial.
Grande equívoco.
A começar pela impecável atuação de Jakob Cedergren no papel de Asger. A opção estética do diretor no jogo de câmeras a explicitar a densidade das escolhas, dos dilemas morais e a angústia do personagem policial. E o impecável trabalho na construção de imagens sem mostrá-las.
Borges dizia que a ficção depende não só de quem a constrói mas, também, de quem a lê, a interpreta. Evoco aqui o escritor porque o roteiro lembra a estrutura do conto, e revela, tal qual um sonho, a indissociável ligação entre imagem e palavra. O filme é um exitoso exercício de linguagem, e escolha criativa bem-vinda para nos fazer lembrar a força da palavra nestes tempos de proliferação de signos.
(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Instituto APPOA – clínica, intervenção e pesquisa em psicanálise.
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