Opinião
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31 de agosto de 2021
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07:20

Liberdade, Democracia e Psicanálise (Coluna da APPOA)

Foto: Marcos Correa/PR
Foto: Marcos Correa/PR

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr. (*)

Apesar de a palavra liberdade não ser um conceito psicanalítico, pode-se dizer que ela é condição para a sustentação da ética psicanalítica, pois assim se deu o início dessa prática do impossível, inaugurada por Sigmund Freud: fale tudo o que lhe vem à cabeça. Por óbvio, isso só se sustenta numa relação de confiança, mas, de todo modo, é preciso uma boa dose de liberdade.

O subversivo em questão, aí, transpõe a proposta inaugural de associação livre por parte do analisante e de atenção flutuante por parte do analista, justamente porque coloca em movimento a possibilidade de o sujeito falar sem ser julgado por esse ao qual ele endereça a sua fala. Isso continua sendo paradigmático na cultura, mesmo porque, às vezes, independentemente do contexto, não precisamos sequer tomar a palavra para que alguém, em sua altiva boçalidade, autorize-se a fazer alguma espécie de julgamento.

Como dizia o saudoso colega Contardo Calligaris, em sua conferência no Fronteiras do Pensamento, ao abordar o tema Medo da liberdade e o sentido da vida atua: “Quem quer mandar nas modalidades de gozo sexual do outro é quem está atrapalhado pela tentação de querer gozar da mesma forma. O que responde ao medo da liberdade é a boçalidade, pois ser boçal é exatamente isso: reprimir no outro a liberdade que me apavora”. Na esteira de sua fala, ele nos advertia de que não tem valores aos quais recorrer senão os que já estão na vida concreta de nossos pacientes, pois, do contrário, são grandes os riscos de produzir alienação e dominação. 

Contardo faz pensar a clínica psicanalítica como uma práxis emancipatória, pois, quando tomamos a palavra em uma análise, também entra cena aquilo que nos aprisiona, escraviza e segrega. Assim, pensar em liberdade implica reconhecer, também, o gozo da servidão ao outro, seja este o terapeuta, o chefe, o cônjuge, o amigo ou, até mesmo, o suposto Estado. 

Sim, psicanálise e democracia são absolutamente indissociáveis. Desse modo, quando se censura ou se interdita a possibilidade de se tomar a palavra, como de costume em regimes totalitários, somos sensivelmente afetados. Como bem disse Luiz Marques no texto Liberdade: um conceito em disputa, publicado no Sul 21, em 15 de julho de 2021, o neofascismo, codinome histórico do bolsonarismo nativo, busca canabilizar o conceito de liberdade como fez com o de anti-sistema, na tentativa de cooptar setores ressentidos com os avanços sociais e econômicos alcançados sob os governos progressistas no país, entre 2003 e 2014. Então, como falar de liberdade quando a tirania também faz uso dessa palavra face à manipulação ideológica de defender a democracia e a liberdade, custe o que custar? 

Como brasileiros, podemos dizer que sabemos realmente o que é liberdade, ou ainda, como é viver num país democrático? Já se tornou um lugar comum a afirmação de que a democracia está agonizando no Brasil, mas, em algum momento, vivemos em um Estado democrático, com os poderes independentes, os direitos humanos respeitados e a livre expressão do cidadão garantidos? Desde o meu ponto de vista, enquanto o Artigo 142 da Constituição figurar como a possibilidade de as forças armadas agirem contra os cidadãos brasileiros, continuaremos sem saber o que é uma democracia plena, a saber: “As Forças Armadas (…) destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Sob o argumento da tal garantia da lei e da ordem, tais forças podem tomar os filhos desta terra como inimigos. Talvez sejamos o único país do mudo democrático que, em sua Constituição, permite uma interpretação que autoriza as forças de guerra a agirem contra os seus cidadãos.  

Nossos corpos ainda estão aprisionados pelo fantasma das fardas. Uma democracia legítima requer atravessar esse retrocesso que insiste em retornar dos escombros. Recentemente, tivemos mais uma ameaça, com a nota emitida pelo ministro da Defesa, em coautoria com os comandantes da Aeronáutica, do Exército e da Marinha. Como se não bastasse, tanques foram às ruas numa lamentável tentativa de demostrar força, embora tenham apenas evidenciado a fraqueza simbólica e real de uma verdadeira deterioração do suposto chefe da nação. Diante de tudo isso, para não submergirmos num Estado melancólico de uma certa ideia de nação que se desmantelou, faz-se necessário reconstruirmos, através do diálogo, a nossa ideia de liberdade, o que implica a defesa incondicional da democracia.

Na próxima semana, teremos o tradicional 7 de setembro. Espero que possamos comemorar a independência valorizando a liberdade, o Estado de Direito e a democracia. Ao reafirmarmos novamente nossas liberdades, talvez poderemos libertar nossos corpos de suas múltiplas amarras, tais como: os efeitos nefastos da ditadura militar de 1964, pois, em pleno 2021, ainda precisamos ouvir da boca de um general se vai ou não haver eleições no próximo ano; da permissividade de uma polícia que insiste em continuar sendo a que mais mata e tortura no mundo há décadas (com alvo certo, o preto e o pobre de periferia); da violência contra a mulher, pois figuramos como os maiores índices de violência doméstica do mundo.

Enquanto psicanalistas, podemos contribuir para as liberdades sempre reconhecendo o valor da palavra, o direito de cada analisante falar sem ser julgado, bem como resistindo a toda e qualquer forma de dominação e tirania. Logo, também somos responsáveis pela defesa incondicional da democracia. 

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Instituto APPOA, doutor em Psicologia Social e Institucional – UFRGS, autor dos livros Perversões: o desejo do analista em questão. Curitiba: Editora Appris, 2019 e Ensaio sobre as pedofilias. São Paulo: Escuta, 2021.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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