Opinião
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26 de julho de 2021
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07:13

Por um cemitério de estátuas (por Marcos Rolim)

Estátua de Edward Colston, que foi traficante de escravos, derrubada por manifestantes na Inglaterra (Reprodução/TV)
Estátua de Edward Colston, que foi traficante de escravos, derrubada por manifestantes na Inglaterra (Reprodução/TV)

Marcos Rolim (*)

Edward Colston foi um traficante de escravos do século XVII na Inglaterra. As autoridades da época ergueram uma estátua em sua homenagem. Desde 1895, ela estava em Bristol (UK). Esse monumento foi derrubado, pichado e lançado ao mar por manifestantes do Black Lives Matter em junho de 2020. Hoje, ela pode ser vista no museu M-Shed, deitada e pichada, e com um relato a respeito de quem era Colston e porque sua estátua foi derrubada por manifestantes antirracistas. Ou seja, o ato de derrubada adquiriu uma dimensão histórica e os sentidos pressupostos pela antiga homenagem foram ressignificados.

Para David Olusoga, professor de História Pública na Universidade de Manchester, a estátua é “o mais importante artefato que se pode selecionar no país para contar a história da tortuosa relação da Grã-Bretanha com seu papel no comércio de escravos no Atlântico.” No local onde estava a estátua, há hoje uma placa colocada por uma pessoa desconhecida onde se lê: “Neste local, durante protestos antirracismo em todo o mundo, uma estátua celebrando o traficante de escravos do século 17, Edward Colston, foi jogada no porto pelo povo de Bristol”. A placa reproduz lindos versos de Vanessa Kisuule, uma poeta da cidade: “You came down easy in the end. / As you landed / A piece of you fell off, broke away, / And inside, nothing but air. / This whole time, you were hollow.” (“Você desceu fácil no final. / Quando você pousou / Um pedaço seu caiu, se soltou, / E por dentro, nada além de ar. / Esse tempo todo, você estava vazio.”). 

Nos Estados Unidos, várias manifestações do tipo já foram registradas. Na Filadélfia, manifestantes desfiguraram a estátua de Frank Rizzo, um policial racista e homofóbico, conhecido por sua brutalidade contra a população negra, que virou prefeito da cidade nos anos 70. Ele foi um forte opositor da decisão judicial de dessegregação das escolas e, em sua última campanha, seu slogan foi “Vote White” (Vote branco). Sua estátua foi removida pelas autoridades após o protesto. Em Richmond, Virgínia, o governador determinou a retirada da estátua de Robert E. Lee, o comandante do Exército dos Estados Confederados durante a Guerra Civil e a questão está sendo debatida na Justiça. No Alabama e no Tennessee há outros casos de estátuas em homenagem a líderes racistas que foram retiradas ou desfiguradas. Na Bélgica, mais de 84 mil pessoas assinaram uma petição solicitando a retirada das estátuas do rei Leopoldo II (você pode assiná-la aqui). Leopoldo II é o principal responsável pela morte de mais de 10 milhões de congoleses ao longo do brutal regime colonial belga. Na África do Sul e em vários países, se exige a retirada das estátuas de um símbolo do colonialismo britânico, Cecil Rhodes, através da campanha “Rhodes Must Fall” (Rhodes deve cair). No Iraque, estátuas de Saddam Hussein vieram abaixo e foram pisoteadas pela população em festa. O mesmo ocorreu com o fim de muitas ditaduras, como nas Filipinas com após o regime brutal e corrupto de Ferdinand Marcos.

Possivelmente em nenhuma outra região do mundo, estátuas foram tão derrubadas por manifestantes como no leste europeu com o fim do domínio soviético. Na Ucrânia, a primeira a cair foi a de Félix Dzerzhinsky, fundador da Checa, a primeira polícia secreta da União Soviética, criada em 1917. Em 2017, o governo ucraniano decidiu retirar todas as 1.320 estátuas de Lênin remanescentes. Sim, o socialismo real adorava estátuas e assombrou o leste europeu com elas durante décadas. Há alguns anos, tive a chance de visitar, nos arrabaldes de Sófia, na Bulgária, o “Museu do Socialismo”. Ali, em um jardim interno meio escondido, há várias estátuas de líderes comunistas e peças do chamado “realismo socialista”, estilo consagrado no stalinismo, que foram retiradas das ruas. Em torno, apenas o silêncio. Para todos os efeitos, o espaço é um cemitério de estátuas. 

Recentemente, uma estátua de 10 metros de altura e 20 toneladas, em homenagem a Borba Gato, no bairro de Santo Amaro, em São Paulo, foi alvo de manifestantes que tentaram incendiá-la. Digo tentaram, porque o fogo foi controlado rapidamente até porque o monumento é vigiado 24h por dia pela guarda municipal exatamente pela histórica oposição ao monumento. A crítica mais comum ao gesto foi a de que Borba Gato faz parte da “nossa história” etc. Para os críticos, então, o fato de que o bandeirante tenha sido um caçador de indígenas e negros, que tenha matado e estuprado, que tenha se evadido da justiça por matar um fidalgo e, depois, comprado seu perdão distribuindo ouro para as autoridades da época, não justifica o protesto e, pela lógica do argumento, sequer uma eventual decisão do Poder Público de remover a estátua. 

Penso que devemos considerar que, quando as pessoas querem retirar estátuas dos espaços públicos, é porque há algo nelas que simboliza ameaças no presente. O racismo, por exemplo, a violência contra os mais pobres, as chacinas, os ataques aos povos indígenas, as balas perdidas que encontram sempre os mesmos corpos negros, tudo isso não diz respeito apenas ao passado, mas ao passado que se prolonga no Brasil exatamente porque nunca enfrentado.

Estátuas de assassinos, torturadores e escravistas não podem estar no espaço público, senão por outro motivo, porque esse é o espaço em que projetamos nossa admiração. O tema deve ser enfrentado pelo Poder Público com a definição de critérios para homenagens oficiais o que, aliás, deveria valer para nomes de ruas, praças e prédios públicos. 

Para isso é preciso, passo um: construir um cemitério de estátuas que legitimam o horror e ali enterrá-las simbolicamente. Passo dois: criar vergonha.

(*) Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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