Opinião
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29 de junho de 2021
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09:55

Coluna da Appoa: Museu das Memórias (In)Possíveis

Imagem da Coleção “Infinitas repetições” (Acervo do Museu das Memórias (In)Possíveis)
Imagem da Coleção “Infinitas repetições” (Acervo do Museu das Memórias (In)Possíveis)

Maíra Brum Rieck (*)

Há 8 anos visitei o Museu Nacional da História da Imigração, em Paris. Na exposição que havia naquele dia – não lembro mais se era permanente ou não –, havia uma colcha exposta. Era uma colcha dessas que, no Brasil, vemos sendo vendidas por ambulantes no verão, nas praias do país inteiro. Uma colcha fininha, tropical. A colcha em si não tinha nada demais, era a história agregada a ela que lhe conferia valor. A história da colcha contava a história de um homem africano que, devido a uma guerra em seu país, teve que migrar para a França. Sua mãe, preocupada com o filho e com o frio que ouvira falar que fazia no país, buscou o artigo mais quente que conhecia – a colcha em questão – para seu filho levar consigo. A colcha, que jamais serviria para barrar o frio intenso do país desconhecido – que bem poderia ser outro planeta –, conta a tragédia e o amor de uma família, mas também as guerras de um país ou continente. Vai do individual ao coletivo.

Um museu não é um lugar de passado, um lugar de morte, um lugar do que já foi. Um museu é um lugar que pretende transformar, fazer diferença, fazer marca. Até porque precisamos de muito passado para termos alguma possibilidade de futuro. Sabemos que quando desconhecemos o nosso passado, seja na esfera individual, seja na esfera pública, estamos fadados à repetição. O encontro com esse museu gerou em mim a vontade de fazer memória em meu próprio país – sempre tão desmemoriado. O que parecia um sonho maluco, um delírio, encontrou fundamento em olhares generosos na Associação Psicanalítica de Porto Alegre, e, mais especificamente, no Instituto APPOA. Os colegas Jaime Betts e Ana Costa acolheram a ideia de criar um museu e me deram a sustentação necessária para seguir sonhando e desejando esse espaço de memória. Descobri com eles que os sonhos só se realizam quando são compartilhado com outros. Deixo aqui minha homenagem a eles. 

Ao longo desses anos, muitos se juntaram e seguiram esse sonho, e esse projeto deixou de ser meu e se tornou de muitos. E, no dia 22 de maio, o sonho de 8 anos atrás se materializou em um museu virtual. O Museu das Memórias (In)possíveis é um espaço de resistência, de questionamento das amarras do espaço público. Questionamos aqui as formas como vivemos em nossa comunidade humana, questionamos quem são os estabelecidos e os outsiders, os que têm direitos e os que não têm, os que são considerados mais humanos do que os supostamente menos humanos. Quem são os matáveis do mundo e o porquê? Ao tentar entender o porquê e ao tentar trazer as histórias, os testemunhos dessas pessoas apagadas da história oficial, nos tornamos um museu de memória, de memórias difíceis e de memórias subterrâneas. Nos tornamos um Museu-Intervenção. 

Mas o que é um Museu-Intervenção? O que seria uma intervenção sob a ética da psicanálise através de um museu? O que propomos aqui não existe na museologia, tampouco existe na psicanálise. Estamos, portanto, no campo da imaginação, da criação, da ficção. Não se trata de um espaço clínico propriamente dito. Os participantes do nosso museu não são nossos pacientes – e não nos propusemos a isso –, mas a clínica está implícita aqui porque trabalhamos em transferência. 

Quando Lacan trabalha a ética da psicanálise, ele recorre à Antígona e a sua luta para que ninguém que tenha existido jamais tenha sua existência apagada. Imagino que os museus sejam feitos por aqueles que têm em comum uma certa “angústia de apagamento”, pelo menos os museus que trabalham com memórias subterrâneas, tal como propõe Michael Pollack. Pior do que a morte do corpo, é a morte simbólica, a morte em vida, a morte de quem  absolutamente não conta. A psicanálise, desde seus primórdios, com Freud, denuncia tudo aquilo que é destruidor do sujeito, todas as formas sociais que aniquilam grupos, as formações de massa que não reconhecem a diferença. 

Mas como contar os que não contam? Aqui no Museu das Memórias (In)Possíveis os contamos um a um, no duplo sentido do termo contar. Contar um por um e contar no sentido de narrar. 

Um dos primeiros objetos que chegou ao nosso acervo é o áudio de uma menina de 14 anos, a Maíra Jaqueline. Ela conta para o gravador de umas das jornalistas do jornal Boca de Rua do seu medo de morrer na rua. Ela, de fato, veio a falecer dois anos depois, sem lápide, sem identidade, com um túmulo temporário – como morrem os pobres nesse país desde sempre. Essa gravação foi feita no jornal Boca de Rua, onde a menina pega um gravador e, escondida, faz seu testemunho. As jornalistas do Boca de Rua encontram esse testemunho tempos depois. O que fazer com essa gravação? A jornalista Clarinha Glock o  guardou em sua casa por anos, até encontrar o Museu das Memórias (In)Possíveis. Quantos de nós não temos em casa, tal qual Clarinha, esses objetos guardados? Essas relíquias que ultrapassam o valor individual, e que contam de tempos e culturas? O que fazer com eles?

Poderíamos dizer que a intervenção do Museu das Memórias (In)Possíveis, nesse caso, seria ter “simplesmente” musealizado  o áudio e feito com que sua voz fosse ouvida. Isso já não seria pouco. Mas não é tudo. Tem também a intervenção subterrânea, a que geralmente as pessoas que acessam o conteúdo não teriam como saber. A forma como trabalhamos é um a um, é artesanal e se dá pela transferência. Antes de colocarmos esse material em circulação, eu fiquei três meses atrás de Denise, a mãe da Maíra Jaqueline. Não era uma estranha para mim, já a conhecia dos tempos em que trabalhei no Boca de Rua, mas ela não lembrava mais de mim. Fiquei muito feliz de vê-la, felicidade seguida de um terror seguido de um mutismo. Como falar com ela sobre a gravação da filha morta aos 16 anos? Encontrei com ela algumas vezes, até achar que tínhamos conversado o suficiente antes de colocar esse material no Museu das Memórias (In)Possíveis. Fui vendo o que acontecia com ela, com seu corpo, ao lembrar e falar da filha morta. Seus olhos eram duros de quem conhece a rua, cravados de dor e de lágrimas; mas, ao mesmo tempo, parecia aliviada de ter uma espécie de lápide para a filha. Também recolhi seu testemunho, sua dor. Aos poucos, Denise começou a chegar aos nossos encontros limpa, arrumada, de batom nos lábios. Bem diferente de todas as vezes em que a vira antes. Denise morreu de Covid-19 esse ano e não pôde ver a “lápide” da filha no Museu das Memórias (In)Possíveis. Fica aqui a minha homenagem à ela. E a todas as Denises e Maíras Jaquelines que morrem de descaso do estado.

A psicanalista Miriam Debieux  propõe o conceito de “desamparo discursivo” para escutar os grupos que não estão sendo vistos em determinado tempo histórico e cultura. Esse conceito também vem em uma certa oposição aos discursos dominantes que se propõem como “A” verdade, como se fossem inabaláveis. Escritos em pedra, como se diz. Dito em psicanalês, como se esses discursos fossem o Outro (com letra maiúscula). Sabemos que esse Outro não existe, mas também sabemos que existem grupos que colocam seus discursos como se fossem “A” verdade para se manter no poder. A escuta dos grupos desamparados discursivamente é fundamental, porque são esses grupos que vão esburacar os discursos dominantes. E é isso que nos propomos no Museu das Memórias (In)Possíveis. 

O exemplo mais óbvio e evidente hoje é o lugar da branquitude, que se colocou ao longo do tempo como um modelo universal de beleza, de normalidade, do que se deveria ser. O movimento negro vem esburacando esse discurso universal e já mostrou que era histórico e pontual o que se dizia absoluto. O que fazemos aqui no Museu das Memórias (In)Possíveis também é isso: historicizamos e esburacamos discursos que se colocam como universais. Trata-se de uma psicanálise implicada. Essa é a nossa intervenção.

(*) Psicanalista, membra da APPOA e do Instituto APPOA, idealizadora do Museu das Memórias (In)Possíveis

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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