Opinião
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9 de fevereiro de 2021
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13:17

Sobre a compatibilidade (por Renata Passolini)

Por
Sul 21
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Sobre a compatibilidade (por Renata Passolini)
Sobre a compatibilidade (por Renata Passolini)
Foto: Campanha do Aborto Legal/Argentina (Divulgação)

Renata Passolini (*)

Como psicanalista em Buenos Aires, escuto as angústias e os sonhos nos relatos de meus pacientes. Acompanho também o desdobramento de medos que a cada passo lhes perseguem, ilusões que não se realizam, projetos que são abandonados, relações de amor que, na metade do caminho, se apagam, acidentes no terreno que os fazem cair, deixando como saldo algum ferido.

Há mudanças por involução, detenções para além do necessário, há inícios que tardam em chegar ou se encolhem precocemente, há quem chega à meta com a solidão que traz a antecipação. A vida avança sempre numa delicada complexidade. Nuns demais, nuns de menos.

Em mais de uma oportunidade, pacientes que recebo no consultório relataram como em suas visitas ao médico obstetra receberam a notícia de que “sua gravidez não é compatível com a vida” seguida de explicações que ninguém quereria escutar, mas contudo…

No mês passado, foi promulgada na República Argentina a lei 27.610 que regula o acesso à interrupção voluntária da gravidez e à assistência pós-aborto, outorgando à mulher ou pessoa gestante um direito de decisão sobre seu próprio corpo, sobre sua vida, e com sua vontade. Até essa data, os abortos eram clandestinos e em muitas ocasiões se cobravam a vida das mais humildes, que o levavam adiante em condições de insalubridade e sem o devido acompanhamento.

A interrupção voluntária de uma gravidez (IVE – sigla em espanhol) se apresenta como uma decisão na qual intervêm as ilusões, a moral, a religião, os preconceitos, as expectativas familiares, os desejos pessoais, a estima de si mesma, a saúde da pessoa gestante e a de sua gravidez, as condições nas quais essa gravidez se produziu, e também envolve à pessoa que exercerá a função Pai com suas expectativas, seus desejos, sua religião, sua moral, sua economia, seu momento vital, ou o interesse que tenha com respeito ao exercício da paternidade. A presença ou ausência de um casal diante da gravidez tem sido um fator pouco tomado em conta, na hora de “se fazer cargo” a responsabilidade recai geralmente sobre quem empresta o corpo à gestação.

O termo “voluntária” para adjetivar a interrupção de uma gravidez, é um termo ambicioso, potente, mas que pode esconder sua complexidade: a vontade se vai construindo, se vai conquistando e as leis que se sancionam são produto da luta. Para exercer a vontade de escolher, é importante despejar os espelhismos que tiravam da mulher ou pessoa gestante a possibilidade de decidir em relação ao próprio desejo.

Às vezes, a gravidez não é compatível com a vida por falhas a nível genético do feto, ou por acidentes nas relações sexo afetivas. Há ocasiões em que se põe em risco a vida da pessoa gestante, ou há ausência total de desejo de maternar.

E às vezes a vida não é compatível com a gravidez: não é possível trazer um filho à família por falta de recursos, ou porque simplesmente não é o momento, ou não se deseja ter filhos.

Durante séculos, reinou o império do natural: se tinhas útero, devias engendrar vida porque assim Deus queria. Era o natural e não importava tua vontade, nem as condições em que se produziu a gravidez. Ao fim e ao cabo, era a vontade divina a que pesava sobre os corpos na hora da decisão. O corpo feminino era só um instrumento para cumprir tal vontade.

Despojarmo-nos da moral cristã que defende a vida, mas não a cuida, que promete e promete, mas poucas vezes cumpre, escutar nossos desejos para além dos mandatos que caem sobre nossos corpos, trabalhar nossa vontade, aqui na terra, onde vivemos. Pensar em nossos recursos e anseios, conformar nosso horizonte: isso a lei permite.

As pessoas a quem faço referência, logo a seguir de processar a difícil situação durante um breve lapso de tempo, e com ajuda profissional, poderão decidir o destino de cada gravidez não compatível com a vida. Graças à promulgação da lei, o processo trará consequências emparelhadas a nível subjetivo, afetivo, e psicológico, mas já não correrá perigo a vida da pessoa gestante.

Com a lei, será nosso desejo o que outorgará a cada gestação a compatibilidade com nossas vidas, ou a nossa vida a compatibilidade com as gestações. Se algo não é compatível com nosso horizonte vital por que forçá-lo a nascer?

(*) Graduada em Psicologia pela Universidade de Buenos Aires, Psicanalista da Après Coup Sociedade Psicanalítica Porto Alegre – Buenos Aires. Doutoranda em Psicologia pela UCES.

Tradução: Lúcia Bins Ely

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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