Opinião
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11 de fevereiro de 2021
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18:40

Portugal em foco: estabilização, reacionarismo e alerta às esquerdas (por Lucas Pacheco Campos)

Por
Sul 21
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Marcelo Rebelo de Sousa (Reprodução/Facebook)

Lucas Pacheco Campos (*)

No dia 24 de janeiro de 2021 se encerrou mais um ciclo eleitoral para o cargo de Presidente da República Portuguesa e muito tem sido dito a seu respeito entre intelectuais e jornalistas brasileiros. Antes de mais nada, é importante um esclarecimento inicial para evitar interpretações equivocadas. O sistema político português se conforma como uma república semi-presidencialista, com forte influência parlamentarista, cujas peculiaridades não permitem projeções diretas entre as eleições presidenciais, onde se escolhe o Chefe de Estado, e os rumos do Governo, eleito em eleições legislativas. Entretanto, é possível traçar algumas relações entre os resultados das urnas e a vida política no país, com repercussões no espectro partidário e na sociedade. Vamos aos números e às nossas principais considerações.


1) Vitória incontestável de Marcelo é também sinal de aprovação ao Governo do PS. 

Apesar do alto índice de abstenção, que apresenta tendência histórica de crescimento (estimulada nesse caso pelas condições pandêmicas), o principal resultado foi a já esperada reeleição em primeiro turno de Marcelo Rebelo de Sousa. Ex-líder de um dos principais partidos da direita tradicional portuguesa, oPartido Social Democrata (PSD), Marcelo foi reeleito com 60,7% dos votos (quase 10% a mais do que em 2016). Sua votação massiva revela, primeiramente, uma aprovação quanto ao seu exercício anterior, sobretudo quanto às suas atitudes inclinadas à estabilização política e à sua relação amistosa com o Governo de Antônio Costa, do Partido Socialista (PS) [iii]. Pelo que indicam as urnas, a maior parte da população aprovou a estratégia marcelista de aproximação pública ao PS, que o permitiu não ser visto como empecilho a uma certa pacificação nacional no pós-regime radicalmente neoliberal que vigorou entre 2011 e 2015, dirigido pela direita tradicional (PSD-CDS) em aliança com a Troika [iv]. Soma-se a isso a aprovação dos portugueses quanto à liderança de Marcelo em tempos de pandemia.

Nesse contexto, fica claro que Marcelo, apoiado oficialmente pelo PSD, tornou-se, na prática, um candidato mais ligado ao centro político, com entrada especial no PS, partido que lhe conferiu um suporte informal quando decidiu não apoiar oficialmente nenhum candidato – repetindo a tática de 2016. A pesquisa realizada pela consultoria Aximage [v] acerca da transferência de votos entre as presidenciais e as legislativas é reveladora. Dentre os votantes de Marcelo, 45,3% são eleitores do PS, contra 38,2% do PSD. Quando agregamos sua representatividade entre a centro-esquerda e a própria esquerda, notamos que 53,2% de seus eleitores votam (nas legislativas) no PS (45,3%), no PAN (5%) e até mesmo no Bloco de Esquerda (3,2%).

2) Marcha da extrema-direita é expressão de sua intimidade com a direita tradicional.

O destaque mais preocupante das eleições claramente está na ascensão relevante da extrema-direita, que, sob a direção de André Ventura e o apoio do partido criado pelo mesmo, o Chega, logrou alcançar o terceiro lugar geral com 11,9% do eleitorado, o que representa quase meio milhão de votos. Se somarmos ainda os votos alcançados por Tiago Mayan (3,22%), daIniciativa Liberal (IL), veremos que a extrema-direita se viu representada em mais de 15% dos eleitores.

É preciso, conduto, diferenciar esses dois espectros da extrema-direita portuguesa. Os dois grupos, Chega e IL, compartilham visões de mundo e projetos de sociedade radicalizados. Articulam-se e se retroalimentam quando os assuntos são suas íntimas relações com a burguesia portuguesa e seus programas econômicos ultraneoliberais. Por outro lado, enquanto o Chega representa uma extrema-direita com traços claramente neofascistas, que remontam a um profundo reacionarismo político e social (xenofobia, racismo, misoginia, lgbtfobia explícitos), a IL se associa de forma menos aberta a essas pautas, se revestindo de um discurso supostamente técnico para justificar os preceitos neoliberais [vi]. Ambos os grupos se lançaram às presidenciais para usá-las como trampolim para as próximas autárquicas e, sobretudo, para as próximas legislativas.A tática pode ter sido exitosa nesse sentido.

Uma das principais considerações quanto ao crescimento da extrema-direita diz respeito à origem de seus votos. Derrubando definitivamente as teses que circulam entre a intelectualidade e a grande imprensa, de que os votantes do Chega se aproximariam do eleitorado comunista, a sondagem sobre transferência de votos já mencionada revela que, na verdade, para além dos votantes do próprio Chega (59,1%), o resultado de Ventura foi turbinado essencialmente por eleitores do PSD (33,9%). Algo similar ocorreu com o candidato da IL, cujo resultado eleitoral se deve em larga medida a eleitores do PSD (52% de seus votos). Outro dado diz respeito ao fato de que os locais onde Ventura teve maior votação no Alentejo, região na qual o PCP é forte, foram justamente os Concelhos onde os comunistas têm historicamente baixa penetração e, por outro lado, a direita tradicional possui larga tradição.

Na verdade, ao contrário do que diz a maior parte dos comentadores políticos, a aproximação da extrema-direita não se dá com uma suposta extrema-esquerda, mas sim com a direita tradicional, que procura se beneficiar desse mito para se vender como solução moderada. A relação íntima entre direita e neofascismo já era evidente há muito tempo, tendo sido abertamente explicitada com a coligação entre PSD, CDS, Chega e IL para o Governo Regional dos Açores em novembro do ano passado [vii].

Assim, caem por terra novamente as teses inconsistentes e eminentemente anticomunistas que recorrem a insipientes teorias sobre “ferraduras” e “totalitarismos” para equiparar os neofascistas aos comunistas. A própria história portuguesa demonstra que o Partido Comunista e outros grupos da esquerda revolucionária foram a ponta de lança na resistência à ditadura fascista e na Revolução de Abril de 1974.

Tal dimensão nos encaminha para uma consideração subsequente: está em curso uma reorganização do espectro político-partidário da direita em Portugal. As parcelas mais extremadas deste campo,que até bem pouco tempo se acomodavam com maior ou menor facilidade nos tradicionais PSD e CDS [viii], podem estar a caminho do Chega e a da IL.Não se trata de um processo exatamente novo, tampouco consolidado. Tais resultados são, na verdade, um indício a mais nesse sentido. As próximas autárquicas e legislativas serão decisivas para avaliar seus desdobramentos. Também não se trata de um fenômeno restrito à realidade nacional. A presença de Marine Le Pen na campanha de Ventura é uma expressão dessas conexões internacionais [ix].

3) Alerta ao campo de esquerda

Adotando uma noção alargada sobre a esquerda, pode-se considerar que o campo foi representado nessas presidenciais por três candidaturas: Ana Gomes, candidata independente ligada a setores de centro-esquerda; Marisa Matias, apoiada diretamente pelo BE; e João Ferreira, apoiado pelo PCP e pelos Verdes. Juntos, alcançaram 24,24% dos votos, cerca de 880 mil eleitores.

Comecemos pela candidatura mais forte do campo. Posicionada em segundo lugar geral, com 12,97%, Ana Gomes é um quadro tradicional do PS que se lançou às presidenciais mesmo sem contar com o apoio oficial de seu partido. Sua intenção declarada era arregimentar uma base alargada do partido para forçar um segundo turno,ocupando o lugar vazio deixado pelo PS. Mesmo não tendo força suficiente para impor uma segunda volta, seus mais de 540 mil votos possivelmente lhe fortalecem para disputas futuras no interior do PS. Ao longo da campanha, na medida em que Ana Gomes se apresentava bem posicionada nas sondagens, somou-se à sua candidatura mais uma tarefa: vencer a extrema-direita. Ficar à frente de Ventura seria uma demonstração de força contra o reacionarismo em ascensão. Por tudo isso, não é desprezível o fato de ter se posicionado claramente contra a extrema-direita e ter ficado à sua frente no resultado geral. Entretanto,do ponto de vista político à esquerda, sua campanha apresentou problemas graves. Ana Gomes se dedicou principalmente a debates gerais sobre temas políticos de momento, posicionando-se, em larga medida, ao lado de um certo senso comum moralista e anticorrupção. Nesse trajeto dúbio, mais centrista do que de esquerda, tirou proveito do nítido destaque oferecido pela imprensa. No fim, quase 70% de seus votos vieram do PS e, devido às sondagens, beneficiou-se da transferência de votos úteis vindos da esquerda.

Em relação ao candidato comunista, houve uma nítida marca de classe em sua linha política. Foi assertivo na defesa da Constituição como salvaguarda das conquistas da Revolução e nas críticas acerca do primeiro mandato de Marcelo Rebelo de Sousa, destacando especialmente seu alinhamento a interesses empresariais e sua participação direta na aprovação de matérias que retiraram ou enfraqueceram direitos. Essas dimensões foram reconhecidas pela imprensa progressista e chegaram mesmo a abrir portas para diálogos com setores mais à esquerda no PS, de onde vieram 17,3% de seus votos.Entretanto, tais aspectos não foram suficientes para elevar a margem eleitoral comparada a 2016.

Ao mesmo tempo que a transferência de votos pelo critério da utilidade lhe retirou eleitores que seriam certos em outras circunstâncias, o ataque cerrado dos conglomerados de mídia, que o apontavam como “extremista”, contribuiu para afastar possíveis aproximações que a boa campanha poderia consolidar. Outro fator que o prejudicou decisivamente foi a ausência da campanha de rua (devido à situação pandêmica), visto que os comunistas são conhecidos por suas arruadas e panfletagens. No cômputo geral, as entradas em parte do eleitorado tradicional do PS (17,3%) e também do BE (4,7%) ajudaram a compensar as perdas, contribuindo para manter o patamar de 180 mil votos alcançado pelo comunista Edgar Silva em 2016.

Quanto à candidata bloquista, sua campanha optou por uma linha mais moderada que a de 2016, tendo, inclusive, chegado a se afirmar como opção social-democrata [x] , apostando em certo afastamento dos “extremos”. Dedicou-se ao debate sobre temas que são mais da responsabilidade do Executivo do que da alçada da Presidência, o que abriu caminho para interpretações de que não passava de uma candidatura de protesto. Também foi prejudicada pelo voto útil em Ana Gomes, mas, possivelmente, foi castigada em maior grau pelos eleitores progressistas (aqueles que geralmente flutuam entre BE e PS) quanto à opção do BE pela reprovação do Orçamento de Estado para 2021 [xi] . Tratou-se de uma postura que possui sustentação plausível dentro da estratégia do partido, mas que se revelou para a opinião pública progressista como uma atitude reprovável, visto que, em plena crise pandêmica e econômica, aparentou romper com as teias que ainda conservavam uma frágil segunda “Geringonça”. A ausência da campanha também lhe prejudicou, já que o Bloco possui tradição em ações de rua. Com tais prejuízos, a candidatura bloquista acabou por despencar mais de 300 mil votos em comparação a 2016, tendo sido a principal responsável pela queda da esquerda.

De forma geral, a esquerda não saiu fortalecida desse processo eleitoral. Contudo, a queda comparada a 2016 pode ser ponderada, visto o já mencionado voto massivo de centro e centro-esquerda em Marcelo e a migração da direita tradicional para a extrema-direita. Quanto à esquerda mais combativa (representada por João Ferreira e Marisa Matias), ter sido superada em cerca de 7% pelas facções de extrema-direita é um sinal de alerta para todo o campo progressista, dos comunistas aos socialistas.

(*) Prof. da UFJF e doutorando em Políticas Públicas e Formação Humana pela Uerj.

Notas

[ii] Disponível em: <https://www.presidenciais2021.mai.gov.pt/resultados/globais>.

[iii] Vale relembrar que o governo do PS, constituído em 2015, foi viabilizado à esquerda (com apoio parlamentar do PCP, dos Verdes e do BE) por meio da solução conhecida como “Geringonça” (oficialmente vigente até outubro de 2019).

[iv] Termo utilizado para designar o grupo de instituições que comandam os rumos políticos e financeiros da Europa: Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional.

[v] Trata-se da sondagem mais recente sobre o tema. Seu resultados não são absolutos, mas indicam tendências importantes de serem analisadas.Disponível em: <https://www.jn.pt/nacional/ps-comecabem-o-ano-e-chega-sobe-a-terceiro-13277047.html>.

[vi] Analogias nem sempre são um bom recurso explicativo, mas pode ser útil nesse caso. Com base no quadro brasileiro, o Chega estaria para o bolsonarismo assim como a IL estaria para o Partido Novo.

[vii] Disponível em: <https://www.dn.pt/edicao-do-dia/17-nov-2020/psd-acordo-com-o-chega-nos-acoresserve-de-balao-de-ensaio-para-2023-13041788.html>.

[viii] O CDS, conhecido reduto de conservadores e tributários do salazarismo, vem em queda livre nas últimas eleições. Segundo as últimas sondagens, caso as legislativas fossem hoje, teria menos de 1% dos votos.

[ix] Disponível em: <https://tvi24.iol.pt/politica/presidenciais-2021/ventura-e-le-pen>

[x] Disponível em: <https://www.noticiasaominuto.com/politica/1642557/sou-uma-social-democrata-naona-mesma-graduacao-que-marcelo-ou-costa>.

[xi] Disponível em: <https://www.publico.pt/2020/10/25/politica/noticia/bloco-anuncia-voto-orcamento- 2021-1936702>.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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