Opinião
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20 de janeiro de 2021
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11:42

Militarização das favelas e comunidades: o braço armado da necropolítica colonial brasileira (por Clovis Bozza Neto)

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Sul 21
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Militarização das favelas e comunidades: o braço armado da necropolítica colonial brasileira (por Clovis Bozza Neto)
Militarização das favelas e comunidades: o braço armado da necropolítica colonial brasileira (por Clovis Bozza Neto)

Clovis Bozza Neto (*)

O aumento constante e expressivo da letalidade policial no Brasil evidencia a adoção de uma verdadeira política de morte praticado pelo Estado brasileiro em todos os seus níveis, intimamente relacionada com as zonas urbanas periféricas habitadas majoritariamente pela população negra e pobre.

Tratando da forma de concretização da violência racial moderna, Sílvio Almeida aponta que uma das tecnologias de articulação do racismo é a “segregação racial, ou seja, a divisão espacial de raças em localidades específicas – bairros, guetos, bantustões, periferias, etc.” (Almeida, 2019). Exemplo de tal situação pode ser observado na reportagem intitulada “Menos emprego, mais favela: áreas com mais negros têm piores índices em SP”, do portal de notícias “UOL”, que analisando os dados do Mapa da Desigualdade produzido pela Rede Nossa São Paulo, apontou a existência de um verdadeiro “apartheid paulista”, demonstrando que apesar de a população declarada negra na capital paulista ser de 32%, o índice chegava a 60% em regiões mais pobres, ao passo que era de 5,82% em Moema, bairro da elite paulistana e com melhores índices sociais, e que os 15 bairros habitados majoritariamente pela população negra e parda tinham os piores índices sociais da cidade.

Além da constatação da segregação espacial, a população negra no Brasil também é a principal vítima de violência no país. Segundo o Atlas da Violência de 2020, 75,7% das vítimas de homicídio no Brasil em 2018 eram pessoas negras, tendo a taxa de homicídio contra pessoas negras crescido 11,5% entre 2008/2018, ao passo que diminuiu 12,9% em relação às pessoas não-negras. Outro dado alarmante é que um jovem negro possui 2,3 vezes mais chances de ser vítima de homicídio do que um jovem não-negro.

Destaca-se, dessa violência nitidamente racializada, o papel preponderante das forças de segurança militarizadas do Estado Brasileiro. No estudo Letalidade policial no Rio de Janeiro em 10 pontos, realizado pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, constatou-se um aumento de 16% da letalidade policial no Estado nos primeiros seis meses de 2019, em relação ao mesmo período do ano de anterior, bem como que tal crescimento já vinha desde 2013, mas com aceleração expressiva a partir de 2016, sendo a média mensal de mortes pela polícia em 2019 quase três vezes superior a média mensal de 2015

Todavia, uma das conclusões mais relevantes do estudo foi a que afastou a relação entre a elevação da letalidade policial nas regiões específicas estudadas, e a redução da criminalidade em tais espaços, com demonstração que o aumento das mortes pelas forças do Estado Fluminense não tiveram impacto na redução de homicídios, e tampouco na redução da ocorrência de crimes patrimoniais.

Outro importante relatório restou produzido pelo Observatório da Intervenção, na tentativa de avaliar o período no qual a cidade do Rio de Janeiro esteve sob intervenção federal no ano de 2018. Intitulado “Intervenção Federal: um modelo para não copiar”, o estudo apontou que houve aumento de 33,6% da letalidade policial no período de fevereiro a dezembro de 2018, comparado com o ano de 2017, apontando, também, o incremento de 56% no número de ocorrências relativas a disparos de armas de fogo, indicando um aumento da violência em decorrência da intervenção. Não obstante, os dados que mais chamam a atenção do relatório é que as operações restaram concentradas majoritariamente nas favelas do Estado, e justamente nas regiões que agiram provocando maior letalidade, acabaram por não ter impacto na redução da criminalidade violenta. 

As regiões que restaram mais atingidas pelo aumento da letalidade policial no período da intervenção, segundo o relatório, foram a Grande Niterói e o Interior do Estado, que registraram, respectivamente, aumentos de 19,1% e 46,5% nesse índice, e a Baixada Fluminense e o Interior, nos quais as altas foram ainda maiores, de 60,8% e 82,6%, respectivamente. As duas regiões responderam por quase metade (48,9%) das mortes por agentes do Estado no período. Todavia, foram também as regiões que tiveram menores impactos das reduções dos crimes de homicídio e roubo, justamente aqueles que o relatório afirma mais impactarem na sensação de segurança. O Interior do estado registrou uma escalada de mortes, terminando a intervenção com 1.648 óbitos, valor 15,8% maior que o mesmo período do ano anterior. Quanto aos roubos de rua, a região da Grande Niterói e o Interior do Estado registraram aumento de 13%, ao passo que em relação aos roubos de carga, apesar da redução de 17,2% em todo o Estado do Rio de Janeiro, na Grande Niterói e no Interior do Estado foram registrados aumentos de 19,1% e 46,5%, respectivamente, em relação ao mesmo período do ano anterior.

Os dados aqui trazidos justificam pelo menos a dúvida sobre a real intenção da militarização dos espaços geográficos urbanos ocupados pelas populações pobres, majoritariamente negras, sob o discurso vazio do “combate a criminalidade”, mas que provocam um verdadeiro genocídio no país, com normalização da morte.

Porém, a partir da decisão liminar de 5 de junho desse ano, de lavra do Ministro Edson Fachin, proferida na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 635/2020, posteriormente referendada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, que, em razão da pandemia causada pelo novo coronavírus, vedou, salvo em situações excepcionais e mediante requerimento escrito dirigido ao Ministério Público do Estado, a realização de operações em comunidades do Estado Rio de Janeiro, mais evidente a necessidade se problematizar a atuação militar em centros urbanos periféricos, que, ao que parece, ao contrário de atuar na prevenção da criminalidade, é o principal elemento causador de violência, muitas vezes fatal, além de instrumento de discriminação racial e social.

Isso porque a decisão referida motivou a realização de um estudo pelo Grupo GENI (Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense), com a formulação de um relatório final apontando que a suspensão das operações nos termos definidos pelo Supremo Tribunal Federal no período avaliado pelo estudo, compreendido entre os dias 5 de junho — quando foi concedida a cautelar–, até 5 de julho, houve uma redução de 78% das operações policiais, ao mesmo tempo em que houve uma redução de 47,7% nos crimes contra a vida e de 39% nos crimes contra o patrimônio no mesmo período, reduzindo-se, ainda, o número de ocorrência de tiroteios em 56,0% no período, sendo a redução aumentada para 71,5%, quando considerados apenas os tiroteios em que foi notificada a presença de agentes públicos de segurança.

Tais dados, confrontados com os demais elementos trazidos, parecem evidenciar que a política de segurança adotada, com cercamento militarizado dos espaços urbanos ocupados pelas populações pobres do país, majoritariamente negra, ao contrário de uma suposta busca pela paz, fomenta um aumento constante da violência do Estado, legitimando uma verdadeira necropolítica, que sustenta o controle das populações excluídas pela distribuição desigual das riquezas decorrentes do sistema de produção capitalista por meio da eliminação biofísica dos “indesejáveis”, em verdadeira continuação das práticas coloniais dos últimos séculos.

A repetição constante e agressiva de operações, incursões ou vigilância de zonas específicas das cidades, quase sempre periféricas e habitadas por populações majoritariamente negras e pobres, eleva a tensão em tais áreas, e cria no imaginário coletivo uma justificação para resultados violentos, ainda que colaterais, ocorridos em decorrência das ações policiais, que cada vez mais legitimadas, passam a ocorrer com mais frequência, aumentando o número de vítimas fatais, e legitimando o corte de investimentos sociais, concretizando a ideia de necropolítica.

Assim, a partir de um olhar para a realidade material do sistema de segurança urbana do Estado brasileiro, notadamente suas ações preventivas e repressivas em zonas urbanas periféricas, habitadas majoritariamente pela população negra e pobre, o que se constata é o claro indiciado que a ação policial constante nesses espaços amplia o limite tolerável de violência praticado pelo Estado nesses locais, tornando inclusive a eliminação física de pessoas indeterminadas como um dano colateral previsível e aceitável, caracterizando a adoção de uma necropolítica contra essas populações.

Verifica-se, ainda, uma relação íntima entre militarização de espaços urbanos específicos das cidades brasileiras como medida legitimante de uma necropolítica de Estado, que para além de garantir o “direito” de matar por ato violento das forças de segurança, também o faz pela legitimação da ausência de infraestrutura pública destinada a atender a população de tais áreas, que, criminalizadas, têm negado o acesso aos serviços públicos essenciais, como saúde, educação, saneamento, dentre outros.

Diante das considerações acima, parece não haver caminho outro para a redução da violência urbana brasileira, que não seja a superação da forma colonial de Estado, com a proibição definitiva de operações militares contra a população civil do país, sobremaneira nos espaços habitados pelos mais econômica e socialmente vulneráveis, seja por forças estaduais ou federais, somada a determinação de realização de investimentos públicos prioritários de urbanização em tais áreas das cidades, com amplos programas de acesso à moradia digna, educação de qualidade, serviços de atenção básica à saúde, pavimentação, saneamento básico, iluminação pública e outras medidas, inclusive com subvenção para os cidadãos sem renda suficiente para o pagamento de tais serviços, a fim de incluir o que sempre restaram abandonados pelo Estado brasileiro, ainda colonial e escravista em sua essência.

(*) Defensor Público (DPE/RS)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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