Opinião
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31 de janeiro de 2021
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12:42

Memórias póstumas de Jair Bolsonaro (por Luiz Marques)

Por
Luís Gomes
luisgomes@sul21.com.br
Memórias póstumas de Jair Bolsonaro (por Luiz Marques)
Memórias póstumas de Jair Bolsonaro (por Luiz Marques)
Foto: Alan Santos/PR

Luiz Marques

“Então, empacou o jumento em que eu vinha montado…”
Machado de Assis

1 – Lembro que fui um parlamentar medíocre, por quase três décadas membro apagado do baixo clero no Congresso Nacional. Não comparecia à tribuna para expor ideias, porque era desprovido de luzes. Não elaborava projetos de interesse das instituições, para melhor servirem os contribuintes, porque era imune à empatia.

2 – Só não esquecia o salário no fim do mês e, com notas superfaturadas de quilometragens, o ressarcimento das visitas de carro às bases. Muitos agora entenderão o apreço da famiglia por postos de gasolina. E por leite condensado, cujo gasto no orçamento da União somou R$ 15 milhões, equivalentes a 2,5 milhões de latas, em 2020. Já com a alfafa, também do menu da alta burocracia estatal/empresarial, prodigalizou-se R$ 1 milhão. Mandei à PQP o repórter que questionou os valores empenhados. “Mito”, bradou em troca a claque.

3 – Fui pai diligente, ninguém pode negar. Encaminhei os filhos afortunados para a mesma atividade parasitária, na mesma categoria clerical. Como eu, a prole mostrou-se refratária ao trabalho, com irresistível atração pela vagabundagem. Quem não possui malandragem, precisa ganhar a vida com suor. Ensinei-lhes desde pequenos, contudo, os atalhos para burlarem a lei e poupei-os de abrir os livros para estudar. Ria de suas traquinagens.

4 – Antecipando as necessidades das gerações vindouras, à vista dos netos, revelei a todos os descendentes machos a arte das “rachadinhas” nos gabinetes, da Câmara de Vereadores à Câmara Federal, passando pela Assembleia Legislativa. É o que digo (dizia): “há que proteger a espécie”. Embora o Ministério Público (MP) não aceite, de pronto, as razões de tamanho zelo paternal.

5 – Estimulei os filhos a cultivarem amizades saudáveis e a evitarem a soberba típica do agir antissocial, vício frequente no meio intelectual. Por isso, cedo, apresentei-os aos sociáveis milicianos que atuam no Rio de Janeiro. E proibi-os de perguntarem pela Marielle. A menção talvez fosse interpretada como uma provocação pelos camaradas de armas (sepultadas no mar). Em casa de ferreiro, espeto de pau.

6 – Os brasileiros são testemunhas. Jamais neguei a admiração pelas Forças Armadas, mesmo depois de haver sido afastado da caserna por indisciplina. “Mau militar”, sintetizou o Gal. Ernesto Geisel. Tampouco neguei a ojeriza pelo Estado de Direito Democrático. Recordem o apoio ao golpe misógino contra a primeira presidentA de nossa história. E o voto pelo impeachment, que proferi, em homenagem ao notório torturador Cel. Carlos Alberto Brilhante Ustra, apresentado como “o pavor de Dilma Rousseff”, supliciada com crueldade pelo facínora.

7 – Tive as qualidades de racista, machista, homofóbico (“preferia ter um filho morto a um filho gay”) e o pendor para o autoritarismo, de brute force, reconhecidos pela sociedade. Quando penso no assunto, sei que minha memória não será conspurcada pela acusação de dissimulação ou apostasia. A injúria é uma cruz muito pesada nos ombros de um homem inocente e pueril.

8 – Para selar a aliança entre as tendências pró-fascista (clássica, que robusteceu o Estado) e pró-neoliberal (que há 40 anos prega o livre mercado no Ocidente) escolhi para o Ministério da Economia um pupilo da Escola de Chicago. Segui as setas da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e da Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN). É ocioso aludir a grupos de elite além-fronteiras.

9 – Coube ao 03 a missão diplomática, no traje de embaixaburger, de receber sob total sigilo instruções diretas do Departamento de Estado, dos Estados Unidos da América, sobre o caminho de retorno da Terra Brasilis à melancólica condição de colônia exportadora de matérias primas. Não era difícil antever o que poderia sair de uma combinação que remexia numa ferida dolorida. Não é o passado colonial-escravista a pedra no sapato para a entrada do país na modernidade?

10 – Se o programa econômico não ajudava, serviu para piorar os índices socioeconômicos. Vide a desindustrialização (o fechamento da Ford tem caráter simbólico), o desemprego, o achatamento salarial, a informalidade, a expansão da pobreza e da miséria. As reduções de aportes financeiros à educação (a começar pela pesquisa), à saúde (leia-se, Sistema Único de Saúde – SUS), à segurança e à infraestrutura cobraram caro as escolhas equivocadas, no momento em que a pandemia despontou no horizonte. O Paulo Guedes disse que iria melhorar com o tempo, o que não ocorreu.

11 – Continuei a reproduzir o mantra liberista, surdo às advertências (da esquerda). Interpelei bolhas protofascistas, com a lenga-lenga sobre “ajustes fiscais”, “austeridade”, “alienação de empresas públicas” e “reformas” para a precarização dos trabalhadores, com a retirada de direitos adquiridos. Enquanto, em paralelo, a vida (ou a morte) mostrava a alternativa correta: investimentos públicos para conter as crises sanitária e econômica, restabelecer os laços de solidarismo e cimentar a nação em termos político-morais. Pelo que, o auxílio emergencial é ilustrativo. Navegava-se à deriva, no desvario, na ignorância.

12 – A enxurrada de fake news robotizadas, com denúncias do 02, o rebento mais funcional no exercício do poder, não traziam esperança na alteração do quadro. Na esteira de mandatários de várias nacionalidades, tendo à testa Donald Trump, abracei o negacionismo e orei pelo rápido contágio da manada para imunizar as pessoas e manter o comércio e a indústria ativos. Uma corrida metafórica contra o aumento geométrico do número de mortos pela doença. Inútil. Como se obedecesse à ordem superior, o vírus manteve o percurso macabro.

13 – Aconteceu ainda da Amazônia vingar-se. Em Manaus, faltou oxigênio nos hospitais, o que condenou pacientes à asfixia, comparável às práticas genocidas nos campos de concentração nazistas. Na verdade, a composição do governo contribuiu para isso. O Ministério da Saúde, sob intervenção de um sabujo incompetente, foi discreto mas sem um papo reto. O Palácio do Planalto foi colonizado: a) pela extrema-direita terraplanista; b) por militares sem formação adequada em postos chaves; c) por igrejas neopentecostais que converteram a fé em uma mercadoria. Deu no que deu. Admito os erros eventuais da liderança. Lamento. Fui induzido pelas redes sociais.

14 – Com incúrias e inépcias, o cipoal acima arrebatou de forma negativa a opinião pública. Ai de mim, rodeado por puxa-sacos e amadores. A imagem, deteriorada nas pesquisas, era a peça que faltava para a contraofensiva da gauche. O governo cometeu crime de responsabilidade, destacaram. Ao descumprir dispositivos constitucionais de assistência técnica e financeira aos entes federados, eu teria colocado em risco a vida dos cidadãos. Demagogia.

15 – Mais: teria violado o Título II da Constituição de 1988, um dos alicerces da República Federativa do Brasil. E o Olavo Carvalho, como se não tivesse o que fazer, enchendo-me de ossos. Vontade de enfiar um pepino in culus do guru, que não cala a boca pornô nem diante dos chocolates da Kopenhagen, que o 01 envia-lhe como mimo. Ah saudade das pescarias com o Fabricio Queiroz, esse guerreiro à toda prova. Fechávamos juntos a contabilidade, sem teleprompter para atrapalhar. A gente resolvia tudo de boa.

16 – Os garotos respeitavam o script, desempenhavam seu papel na trama com dedicação. Acho que o passo foi maior que as pernas. Na oposição à governança do Partido dos Trabalhadores (PT), a cobertura jornalística era, ora tolerante, ora acolhedora. Não carecia negociar vultosas verbas publicitárias, à guisa de contrapartida às demonstrações de silêncio obsequioso ou simpatia comedida. Paciência e caldo de galinha pareciam não acalmar a ambição.

17 – O resultado das urnas, nas eleições de 2018, inflacionou a cumplicidade midiática. Não resisti. Tornei-me um finado na política, acompanhado no cortejo fúnebre apenas pelo famigerado “Centrão”, que tirou o baixo clero da coxia e jogou-o para a frente do palco. Apesar da desconfiança da alcateia tresloucada e descerebrada de órfãos, ao redor do féretro. Órfãos são como motores avariados, sem um mecânico que conserte-os, ligue a ignição e ilumine o amanhã com um projeto, perdem o rumo.

18 – O Movimento Brasil Livre (MBL) e o Vem Pra Rua (VPR) não compareceram à cerimônia. Traíras. Se arrependo-me do que fiz na Presidência? A resposta é, sim, pontualmente; não, no conjunto da obra. Como na canção de Edith Piaff: “Je ne regrette rien”. Quanto a você, querida “Micheque”, homenageada pelo grupo musical Detonautas Roque Clube, na composição de Tico Santa Cruz e Marcelo Adnet, procure outro hétero para ser feliz. Pesquise no Tinder. Despeço-me comido pelos vermes comunistas, no leito do sono definitivo. Taoquei?

Agradecimentos

Agradeço, em especial, ao Gal. Eduardo Villas Boas, Comandante do Exército Brasileiro de 2015 a 2019; a Sergio Moro, ex-Juiz e ex-Ministro da Justiça e Segurança Pública; à Força Tarefa da Lava-Jato do Ministério Público Federal (MPF), do Paraná; ao Poder Judiciário (PJ) e; ao Supremo Tribunal Federal (STF). Estendo o reconhecimento à Mídia corporativa pelo trabalho de toupeira para destruir as instituições políticas e, em particular, o Partido dos Trabalhadores (PT) e Luís Inacio LULA da Silva. A participação de todos foi crucial para que eu chegasse LÁ. A vacina contra a democracia, no período, funcionou.

(*) Professor universitário e ex-Secretário de Cultura do Rio Grande do Sul.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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