Opinião
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16 de novembro de 2020
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13:08

As eleições de 2020 e os caminhos da esquerda política (por Sandro Ari Andrade de Miranda)

Por
Sul 21
sul21@sul21.com.br
Foto: Luiza Castro/Sul21

Sandro Ari Andrade de Miranda (*) 

Terminado o primeiro turno das eleições de 2020, mesmo com os atribulados impactos do caos no sistema de apuração dos TREs e do TSE, algumas questões já podem ser perfilhadas como elementos de avaliação. A primeira questão consiste no entendimento de que a direita consolidou posições no cenário nacional, há uma redução da esfera de fanáticos do bolsonarismo, mas a velha direita, com os seus apelos a valores patrimonialistas soube ocupar o vazio deixado pela própria esquerda em várias esferas, tema que será retomado adiante.

Um segundo aspecto, e este avaliou como muito positivo para o campo de esquerda, é um crescimento significativo do PSOL como força política, tendo Guilherme Boulos como quadro mais expressivo. Contudo, e isto é ainda mais significativo, o crescimento psolista não se resume à presença de uma única liderança expressiva, também inclui a emergência de muitos quadros novos, alguns ainda bem jovens, todos a vinculados a movimentos sociais. Este processo oxigenou e alargou as bases do partido e uma prova disto foi o bom desempenho de Fernanda Melchionna na disputa pela Prefeitura de Porto Alegre e a eleição de 5 vereadores na capital gaúcha, cenário semelhante ao observado em outros municípios do país.

A terceira questão que não pode deixar de ser avaliada é o crescente enfraquecimento dos grandes partidos de esquerda e centro-esquerda, em especial o PT e o PCdoB. São duas das forças mais expressivas do país pós-abertura democrática e principais suportes dos 14 anos de governo da progressista, entre 2003 e 2014, no país. Aqui não cabe reproduzir a simplória explicação mediada pelo antipetismo. Uma prova disto é que outros partidos de centro-esquerda não tão vinculados aos referidos governo, como o PDT e o PSB, também não cresceram. Na verdade, mantiveram o seu espaço consolidado. O problema parece ser mais amplo e envolve questões estratégicas e discursivas que os próprios partidos, especialmente o PT, precisam refletir. Vou tomar a liberdade de listar e analisar algumas.

O primeiro problema é uma crise de identidade programática, o PT parece sentir vergonha de assumir a defesa de ações que sempre foram a sua marca, especialmente nas gestões locais. Praticamente não se observa mais a defesa aguerrida de processos participativos como bandeira central. A crise democrática que o país enfrenta é exatamente o resultado de uma reação contra a participação popular, lembrar do ataque processado pelo movimento golpista no Congresso ainda em 2014, inclusive com o envolvimento do próprio Rodrigo Maia (DEM), contra a Política Nacional de Participação Social. Orçamento Participativo, Conselhos, sociedade civil organizada e movimentos sociais são construções democráticas que, no Brasil, sempre foram bandeiras defendidas pela esquerda. A grande inovação das últimas eleições foi a construção do mandato coletivo que nada mais é do que uma agenda participativa. Este é apenas um dos temas que precisa ser retomado, não sendo esquecido como mero registro histórico.

O segundo ponto que precisa de reflexão é a necessidade de recuperação e fortalecimento do vínculo dos partidos com movimentos sociais. Isto não significa dizer que PT e PCdoB, especialmente, tenham deixado de possuir quadros vinculados a tais movimentos, uma prova disto foi a renovação da bancada destes partidos em Porto Alegre exatamente por figuras vinculadas a movimentos populares. No entanto, o PT, notadamente, viu crescer o poder político de quadros que se limitaram às disputas dentro da burocracia partidária ou mesmo dentro da burocracia governamental. Este fenômeno sufocou o partido programaticamente, restringiu a possibilidade de renovação e afastou novas lideranças sociais, criando imensas lacunas no campo social. Aliás, este é um dos fenômenos que explica o crescimento da direita na periferia das grandes cidades, onde se observou o esvaziamento dos espaços de participação e ocupação destes por movimentos religiosos e pelo populismo conservador.

O terceiro problema que se alinha aos anteriores é a necessidade de renovação de quadros. Com exceção de Pepe Vargas (Caxias) e Ary Vannazy (são Leopoldo), nenhum dos quadros que surgiu na geração 1970-1990 obteve sucesso neste pleito. Isto não significa que estes quadros perderam o seu valor, ao contrário, mas que os partidos precisam construir e apostar em novas figuras que representem a sua imagem. Uma breve pesquisa indica que a maioria dos mandatos eleitos para Vereadores pela esquerda na maioria das cidades gaúchas foi de quadros mais jovens, a grande maioria vinculada a movimentos sociais emergentes. Tais quadros precisam também ocupar as candidaturas majoritárias. Boulos (PSOL), em São Paulo, Manuela (PCdoB), em Porto Alegre e Marília Arraes (PT), em Recife, são quadros jovens e com grande potencial. Os partidos são instituições que representam ideias, projetos e programas, sua existência é superior à de suas lideranças. Portanto é necessário uma política institucional de construção de quadros e não apenas de formação. Neste ponto, um diálogo freireano entre a experiência e a juventude, como fonte de troca de experiências e aprendizado mútuo, é fundamental.

O quarto problema aqui apresentado é a necessidade de fortalecer pautas gerais, que unifiquem a agenda programática. O combate a pobreza é uma destas, assim como a participação. No entanto, é inaceitável que os partidos de esquerda não coloquem as políticas ambientais como sua bandeira central ou, pelo menos, na mesma hierarquia das demais. A pandemia de COVID-19 e as mudanças do clima, com secas intensas em todo o país, já deixaram claro que é necessária uma mudança radical no modelo econômico, com maior distribuição e menor dano ao meio ambiente. Trata-se de um tema que envolve a sobrevivência de milhares de vidas e deveria ser o tema gerador inicial de todos os programas. As políticas ambientais não podem mais ocupar a periferia dos programas de governo.

Por fim, resta lembrar que esta é ainda uma avaliação ainda inicial, muita coisa ainda precisa ser estudada criteriosamente, mas a ausência de reflexão crítica pode ter um custo gigantesco como o observado nos retrocessos democráticos enfrentados pelo país desde 2016.

(*) Advogado, doutorando em sociologia.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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