Opinião
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28 de setembro de 2020
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20:04

Se o desmatamento e as queimadas lhe doem considere diminuir o consumo de carne (por Cristine Kaufmann)

Por
Sul 21
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Se o desmatamento e as queimadas lhe doem considere diminuir o consumo de carne (por Cristine Kaufmann)
Se o desmatamento e as queimadas lhe doem considere diminuir o consumo de carne (por Cristine Kaufmann)
Foto: Vinícius Mendonça/Ibama

Cristine Kaufmann (*)

Em seu discurso de abertura da 75º Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), o presidente Jair Bolsonaro, pressionado pelos avanços do desmatamento e das queimadas e pelas quase 140 mil mortes causadas pela pandemia de COVID-19, afirmou que o Brasil “é vítima de uma campanha brutal de desinformação”. No entanto, o que se viu, logo de cara, foi que a desinformação e o negacionismo sustentaram o seu próprio discurso que, mal esfriou, já estava sendo amplamente questionado por entidades, pesquisadores e veículos de comunicação, em especial, aqueles envolvidos com a problemática socioambiental.

Entre as afirmações, estava a de que “o Brasil é líder em conservação de florestas tropicais”. Temos a primeira informação falsa. De acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), somos o país que mais desmata no mundo. Só em 2019 foram destruídos mais de 17 mil km² na Amazônia e no Cerrado. E, mais: análise da Global Forest Watch, plataforma dinâmica online para proteger florestas ao redor do mundo, mostra que o Brasil concentrou mais de um terço de toda a perda de florestas tropicais primárias em 2019.

De acordo com a Fakebookeco, plataforma de combate à desinformação ambiental desenvolvida pelo Observatório do Clima, nas últimas décadas, o país avançou na proteção destes ecossistemas, criando sistemas de monitoramento por satélite, demarcando terras indígenas e criando unidades de conservação e planos de prevenção e controle do desmatamento. Contudo, em 2019, os planos foram engavetados pelo governo Bolsonaro e, desde então, o país não apresenta políticas sólidas de combate ao desmatamento. Sem falar que a criação de unidades de conservação e a demarcação de terras indígenas estão paradas.

Bolsonaro também afirmou que “os incêndios acontecem praticamente nos mesmos lugares […] onde o caboclo e o índio queimam seus roçados […] em áreas já desmatadas”. A informação também é falsa. Dados da Nasa, do Inpe e de estudo publicado recentemente na Revista Science, desenvolvido por pesquisadores do Inpe e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mostram que grande parte das queimadas ocorre em áreas recém-desmatadas, principalmente, para abertura de pastagens, e não em áreas agrícolas consolidadas. De acordo com esse estudo, mais da metade dos focos de calor (52%) e 67% dos alertas de desmatamento ocorreram em grandes e médias propriedades rurais.

Dados apresentados pelo projeto Cortina de Fumaça, capitaneado pela Ambiental Media, com apoio do Rainforest Journalism Fund, indicam que propriedades rurais de médio e grande porte responderam por 72% dos focos de calor nas quatro áreas mais críticas da Amazônia em 2019. A observação conjunta dos dados expõe a concentração dessas atividades em latifúndios, ao contrário do que sugeriu o presidente Jair Bolsonaro em seu discurso.

Importa destacar também que há uma investigação da Polícia Federal em curso para descobrir quem são as pessoas envolvidas no “Dia do Fogo”, ocorrido em 10 de agosto de 2019, na cidade de Novo Progresso, no Pará. Segundo as investigações, os principais suspeitos de organizar a ação criminosa “são pessoas poderosas da cidade — fazendeiros, madeireiros e empresários”. Eles fizeram “uma ‘vaquinha’ para pagar os custos do combustível usado para alastrar as chamas. Além disso, contrataram motoqueiros para entrarem nas estradas de terra próximas à floresta espalhando o líquido inflamável. A ação triplicou os focos de incêndio na região”. Em relação às queimadas no Pantanal, também há uma investigação da Polícia Federal em curso, que objetiva rastrear as origens do fogo: “nossa investigação analisa focos de incêndios entre junho e julho, e concluímos que eles foram causados por ação humana. As investigações e as perícias apontaram para quatro fazendas que podem ter iniciado o fogo. As fazendas e seus proprietários estão sendo investigados”.

Por fim, Bolsonaro afirmou que “os focos criminosos são combatidos com rigor e determinação”, e que mantém “política de tolerância zero com o crime ambiental”. Mais uma vez, a fala do presidente foi facilmente desmontada. No Pantanal, as queimadas já devastaram 21% do bioma, segundo dados publicados pelo Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (LASA), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É o número mais alto em 23 anos de monitoramento do bioma por satélite realizado pelo Inpe. Já na Amazônia, dados preliminares de alertas de desmatamento feitos pelo Inpe mostram aumento de 34% da devastação neste ano em relação ao mesmo período de 2019, que já havia registrado a maior alta da taxa oficial de desmatamento em onze anos.

Desmatamentos, queimadas, descaso com os povos originários… tudo, para “plantar gado”. De acordo com Rivero et al (2009) [1], a principal atividade responsável pelo desmatamento na Amazônia Brasileira é a pecuária: “no Brasil, a maioria dos estudos já têm demonstrado que o desmatamento tem sido causado pela conversão de floresta, principalmente para pecuária, agricultura de corte e queima ou associada à exploração madeireira […] Dessas causas, a expansão da pecuária bovina é a mais importante”. Os autores também afirmam que “esta tendência é reforçada pelo crescimento nacional e internacional da demanda de carne” (RIVERO et al, 2009).

As queimadas no Pantanal e os dados sobre o desmatamento da Amazônia e do Cerrado estão chocando pessoas e organizações do Brasil e do mundo, trazendo angústia e tristeza a quem acompanha as diversas notícias e imagens divulgadas diariamente. Então, a fim de ampliar e qualificar o debate público, importa também refletirmos sobre o que motiva toda essa destruição: o consumo de carne. Para Maureen Santos, coordenadora de Programas e Projetos de Justiça Socioambiental da Fundação Heinrich Böll Brasil, o aumento no consumo de carne no Brasil e, em todo o mundo, pressiona as áreas florestais, que acabam desmatadas e queimadas para dar lugar a pastagens ou plantações de soja e milho, utilizados como ração para os animais. Segundo ela, “a cadeia da proteína animal se expandiu com o aumento da produção de commodities [grãos para exportação] no Cerrado. Foi empurrada para a Amazônia, com a criação de gado, em um volume gigantesco de hectares. A soja abrange 33 milhões de hectares e a pecuária, mais de 200 milhões de hectares. Não tem como resolver o problema do desmatamento sem olhar para a pecuária e o monocultivo [de soja]. É uma questão que tem de ser enfrentada”.

Devido ao alto consumo de carne, boa parte dela exportada in natura (animais vivos), já há mais bovinos do que pessoas no Brasil. De acordo com o Instituto de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil possui em torno de 215 milhões de cabeças de gado — para 210 milhões de habitantes –, o que equivale a cerca de um quinto dos 996,4 milhões dos bois e vacas existentes no mundo, segundo o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA). Ainda segundo o IBGE, só no terceiro trimestre de 2019, foram 8,35 milhões de bovinos mortos para consumo no Brasil. Lembrando que para alimentar essa quantidade de animais, também é necessário devastar grandes áreas para plantio do alimento, o que contribui ainda mais para o desmatamento e as queimadas. Em agosto de 2019, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), organização científico-política criada em 1988 pela ONU, sugeriu em seu relatório anual a diminuição do consumo de carne como forma de diminuir os impactos climáticos causados pela produção.

É evidente que, além de nossa responsabilidade individual sobre a escolha do que colocamos no prato há, também, a dimensão coletiva, de interesse público — ou de alguns públicos –, atravessada por relações de poder e questões econômicas, políticas, culturais. De todo modo, se o que você vê diariamente nos noticiários lhe causa tristeza e indignação; se você se pergunta como poderia ajudar, reduza o consumo de carne. Não se preocupe que, para contribuir, não é necessário acabar com o consumo de imediato. Basta pensar que um bife a menos no seu prato já é de grande valia, ainda mais se considerarmos que, além de toda a degradação ambiental envolvida na criação de gado, para produzir um quilo de carne são necessários cerca de 16 mil litros de água! E, sabemos, que água é outro grande problema socioambiental. Outro caminho interessante é buscar informação de qualidade sobre o assunto — artigos, notícias, documentários… há aos montes na Internet. Enfim, se o desmatamento e as queimadas lhe doem, considere diminuir o consumo de carne como forma de preservar a Floresta Amazônica, o Cerrado e Pantanal.

Nota

[1] RIVERO, Sérgio et al. Pecuária e desmatamento: uma análise das principais causas diretas do desmatamento na Amazônia. Nova Economia. Vol. 19 nº. 1 Belo Horizonte Jan./Apr. 2009. P- 41–66. Documento em PDF. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-63512009000100003&lng=en&nrm=iso.

(*) Ecofeminista, professora universitária, doutora em comunicação e informação pela FABICO/UFRGS. Integra o Coletivo Ecofeminista Pandora (@pandoraecofeminista no Instagram). Artigo publicado originalmente no Medium.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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