Opinião
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9 de setembro de 2020
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11:03

É preciso acabar com o teto de gastos para que o Brasil não colapse

Por
Sul 21
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É preciso acabar com o teto de gastos para que o Brasil não colapse
É preciso acabar com o teto de gastos para que o Brasil não colapse
“Dessa política serão colhidas continuidade do alto desemprego e irresponsabilidade fiscal”. Foto: Marcelo Casal Jr. /Agência Brasil

Alessandro Donadio Miebach, Carlos Henrique Horn e Adalmir Marquetti (*)

O manifesto em defesa da manutenção do teto de gastos subscrito por um conjunto de economistas, a maioria dos quais vinculada ao mercado financeiro, apresenta uma análise equivocada e prescreve políticas econômicas danosas ao país e sua população. [1] Diferentemente do que apregoam, o teto de gastos é uma das principais causas da fraca recuperação da economia brasileira. Ao ser convertido na pressuposto central da gestão pública, condena o país à estagnação econômica.

A avaliação repetida de alguns economistas, especialmente os associados ao mercado financeiro, sobre o estado geral das contas públicas está equivocada. A agenda baseada na assim-chamada “austeridade fiscal” tem sido incapaz de produzir o retorno do crescimento econômico e a própria melhora nas contas públicas. Neste intervalo, apesar da piora nas finanças públicas, houve queda na taxa de juros em meio à crise que se aprofundou com a adoção da agenda da austeridade em 2015. A cada promessa frustrada correspondeu uma renovação na aposta em reformas que são simplesmente incapazes de propiciar maior crescimento.

Também não se sustenta o argumento de que são as expectativas associadas à trajetória da dívida pública e às restrições do teto que levariam à queda da taxa de juros. Nesta já longa pandemia, ficou claro que a dívida pública prosseguiu em rápido crescimento e nem por isso o Banco Central deixou de reduzir a taxa básica de juros. A associação entre o suposto aumento da confiança devido ao teto (causa) e a queda na taxa de juros (consequência) decorre de hipótese fundada em uma “racionalidade mágica”, a qual seria capaz de “prever” o futuro e justificar a destruição do presente em troca de uma suposta recuperação econômica a ocorrer mais adiante. Esta visão tem sido desmentida pela teoria econômica contemporânea e pela evidência empírica. A dificuldade de alguns em acompanhar de maneira mais próxima o debate macroeconômico internacional não chega a gerar surpresa.

O nível da taxa de juros depende de aspectos bem mais objetivos, como os efeitos do ciclo de liquidez internacional sobre os juros internos, a baixa inflação derivada de um mercado de trabalho em contração e um ainda confortável estoque de reservas cambiais. Conquanto tenha diminuído substancialmente para os padrões brasileiros, a taxa de juros não tem servido como estímulo suficiente ao consumo das famílias e ao investimento privado. A demanda do setor privado reagirá apenas com a melhora das condições do mercado de trabalho e o aumento do uso da capacidade instalada. Frente a este quadro, é necessária a ação efetiva do Estado como condição para a recuperação da atividade econômica. Já o corte de gastos públicos, ao contrário, atuaria como mais um elemento contracionista da demanda agregada, agravando a crise econômica.

A redução na oferta de bens públicos que resultará das propostas alinhadas à defesa do teto e à “austeridade” será extremamente danosa à população. A desindexação pretendida das despesas previdenciárias implicará a redução na renda disponível às famílias e acentuará a queda na demanda. No mesmo caminho, cortes de salários e de jornada dos funcionários públicos realizadas de forma canhestra gerarão efeitos recessivos e consequências nefastas sobre a qualidade de vida da população. Sobre isso, vale perguntar: quais jornadas de trabalho serão efetivamente reduzidas? Por acaso, será cortado um quarto da jornada dos servidores da saúde? Ou será eliminado da jornada dos professores? Ou, de maneira menos óbvia, será suprimido do contingente de pessoas dedicadas à fiscalização ambiental do Brasil? Seriam estas as estratégias corretas para o desenvolvimento do país e o bem-estar da população?

É fato que existem distorções no serviço público brasileiro e que tais distorções devem ser enfrentadas. Entretanto, propostas superficiais como as atualmente em voga apenas revelam um total desconhecimento da complexidade do país, em especial diante das consequências das crises sanitária e econômica. É bem plausível supor que, travestido de combate a privilégios, o que se propõe é a mera contração da oferta de bens públicos. Além disso, curiosamente, a defesa do teto deixa de mencionar uma necessária reforma tributária, dentre outros, com o propósito de reduzir de maneira efetiva a regressividade dos impostos e tributar os mais ricos num país com uma das maiores desigualdade de renda e riqueza do mundo.

A sustentabilidade da dívida pública só poderá ser alcançada com o crescimento econômico. O teto de gastos não foi capaz de estabilizar a relação entre a dívida e o PIB. Mesmo com menor taxa de juros, a melhora na trajetória da dívida está condicionada a uma taxa positiva de crescimento econômico. As sugestões que dominam o debate na mídia nacional não produzirão esse crescimento, nem promoverão uma retomada vigorosa do emprego. Ao mesmo tempo, sabe-se que uma pronta resposta da arrecadação de impostos ao crescimento do produto é a contraface da forte redução nessa arrecadação em conjunturas de crise. Assim, uma política fiscal pró-cíclica nesse momento será recessiva e muito provavelmente contraproducente aos seus próprios objetivos. Conforme mostra a experiência, o arcabouço da política econômica pretendida não produz dinamismo da demanda interna; portanto, não há porque esperar que, no próximo ano, o crescimento econômico seja robusto a ponto de reverter minimamente a atual tragédia do mercado de trabalho ou de melhorar o quadro das finanças públicas. Dessa política, portanto, serão colhidas continuidade do alto desemprego e irresponsabilidade fiscal.

Sejamos claros: não é preciso flexibilizar o teto; a gravidade da conjuntura econômica impõe a conclusão de que o teto deve ser simplesmente eliminado. O teto inibe a retomada da economia e com isso ameaça a sustentabilidade da dívida pública e a conduta fiscalmente responsável. Na atual conjuntura, é necessária uma política fiscal com gastos adicionais que tenham efeitos reais sobre a atividade econômica, as degradadas condições sociais e as complicadas condições sanitárias. O país encontra-se em um momento decisivo de sua história. Em 2020, a renda per capita possivelmente atingirá um patamar inferior ao de 2008. Assim, iniciaremos o ano de 2021 com uma década perdida nos ombros. Não podemos aceitar mais uma geração perdida. É preciso acabar com o teto para que o Brasil não colapse.

(*) Professores de Economia na UFRGS e PUCRS

[1] Divulgado em 16 de agosto no site da Folha de São Paulo e em outros meios.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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