Opinião
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31 de julho de 2019
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19:39

Para combater a banalidade do mal: memória, justiça e verdade (por Suelen Aires Gonçalves)

Por
Sul 21
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Para combater a banalidade do mal: memória, justiça e verdade (por Suelen Aires Gonçalves)
Para combater a banalidade do mal: memória, justiça e verdade (por Suelen Aires Gonçalves)
Foto (Twitter/Reprodução)

Suelen Aires Gonçalves (*)

Revivemos as dores de processos não realizados em nosso país, no que tange à memória, à justiça e à verdade dos crimes de lesa-pátria como a escravidão e a ditadura civil militar. A fala do “Ocupante do Palácio do Planalto” proferida no dia de hoje é a síntese da banalidade do mal, como diria Hannah Arendt. O hábito de deixar no passado tais fatos históricos é uma das propostas de reflexão logo a seguir. Crimes contra a humanidade, como os acima citados atingem a dignidade de todas e todos cidadãos brasileiros.

Somos o país com a maior população negra fora da África, porém, tal história é quase não dita. O desconhecimento do povo brasileiro em relação aos horrores e às sequelas da escravidão é gigante. O esquecimento não é um acaso, é um projeto político muito bem elaborado pelas elites em território brasileiro. Somos o pais de maior relevância na história da diáspora africana. Pelos dados disponíveis, foram mais de 4 milhões de escravizados que chegaram em território nacional pelos portos do Rio de Janeiro, Salvador e Recife entre 1830 e 1850.  As terríveis condições da travessia, falta de alimento, água, condições sanitárias, contribuíam para uma taxa de mortalidade de mais de 10% dos cativos. Neste contexto, o oceano atlântico foi um colossal cemitério de corpos africanos.

A mão de obra escravizada contribuiu nos ciclos econômicos do açular, do algodão, do ouro, do café. Porém, a escravidão não era exclusividade da agricultura para exportação. O nosso pais era uma sociedade escravocrata no sentido mais amplo do termo. Vejamos os jornais da época, venda e aluguel de seres humanos estavam no decorrer das páginas. Tais marcas da banalidade do mal, como diria Hannah Arendt, estão presentes e latentes no seio da sociedade brasileira racista pós-abolição e nas experiências de liberdade, mas sem nenhuma indenização do estado por séculos de trabalho coagido, sem acesso à terra para produção ou moradia, sem acesso à educação, marcadas e marcados pelo preconceito racial em um país dito “cortês” é a síntese no final do século 19 e início do século 20.

No que tange nossa experiência recente da ditadura civil militar – Golpe Militar de 1964, recordado na data de hoje, abre outra ferida ainda exposta.  O “ocupante do Palácio do Planalto” de maneira desrespeitosa afirma: “Se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, conto pra ele”. Ou seja, diferentemente de seus colegas que buscam de todas as maneiras esconder da história a face cruel seus crimes – o “ocupante” parece se regozijar com tal fala. Tivemos uma experiência de Golpe Militar que vitimou centenas de cidadãos entre 1694 e 1985. Temos inúmeros desaparecidos como é o caso de Fernando Augusto de Santa Cruz, desaparecido político na cidade do Rio de Janeiro, pai do atual presidente da OAB.  Tal fala dialoga com o conceito de “Banalidade do Mal”, cunhado por Hannah Arendt no livro “Eichmann em Jerusalém”. Nesta obra a autora afirma que, em resultado da massificação da sociedade, criou-se um corpo incapaz de fazer julgamentos morais. Neste sentido, o mal torna-se assim banal. Vejamos um trecho da obra:

“Será que a natureza da atividade de pensar, o hábito de examinar, refletir sobre qualquer acontecimento, poderia condicionar as pessoas a não fazer o mal? Estará entre os atributos da atividade do pensar, em sua natureza intrínseca, a possibilidade de evitar que se faça o mal? Ou será que podemos detectar uma das expressões do mal, qual seja, o mal banal, como fruto do não-exercício do pensar?” (ARENDT, 2008).

Poderíamos, ainda, dialogar com a falta de perspectiva democrática da fala do “Ocupante do Palácio do Planalto”. Pois tal posição não dialoga com um dito “Estado Democrático de Direito” e sequer tem diálogo com as instituições da República Federativa do Brasil. Sua fala demonstra a face mais perversa, torna-se cúmplice dos crimes praticados pelos seus pares. Desrespeita a dignidade da pessoa humana e a memória dos desaparecidos políticos.

Tais fatos trazem à tona a não memória, verdade e justiça como nos casos acima citados. Somos uma sociedade fraturada pela história da escravidão e da Golpe Militar de 1964. A Banalidade do mal está a solta em nosso país, precisamos detê-lo. E seguindo as palavras do Presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, faço as minhas: “Temos o compromisso inarredável com a democracia, goste o “Ocupante do Planalto” ou não. Como diria Iya Sandrali Bueno: “Necessitamos de um novo pacto civilizatório”. Pela memória, justiça, verdade e pela reparação histórica, seguiremos!

(*) Socióloga, Doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membra do Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania (GPVC-UFRGS).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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