Opinião
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16 de junho de 2019
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11:03

LGBTfobia é crime: e agora? ( por Tamires de Oliveira Garcia e Caio Klein)

Por
Sul 21
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LGBTfobia é crime: e agora? ( por Tamires de Oliveira Garcia e Caio Klein)
LGBTfobia é crime: e agora? ( por Tamires de Oliveira Garcia e Caio Klein)
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Tamires de Oliveira Garcia e Caio Klein (*)

Na quinta-feira, dia 13/06/19, o Superior Tribunal Federal (STF) julgou as duas ações que envolviam o tema da criminalização da LGBTfobia[1]: a Ação Direta por Omissão (ADO) n. 26 e o Mandado de Injunção (MI) n. 4733. Já antes dessa discussão, outros casos envolvendo os direitos da população LGBT já foram decididos pelo STF: o reconhecimento da união estável e, posteriormente, a possibilidade de converter a união estável em casamento, o que trouxe reflexos nos direitos sucessório e previdenciário; a autorização para realização de cirurgias de redesignação sexual no SUS; a adoção por casais não heterossexuais; e a alteração do registro civil de pessoas transgênero para a adoção de nome social que corresponda à identidade de gênero.

A decisão judicial é para que condutas discriminatórias relacionadas à orientação sexual e identidade de gênero tenham adequação típica, ou seja, possam ser enquadradas na Lei 7.719/1989, que prevê os crimes de racismo, até que o Congresso Nacional aprove uma lei criminalizando tais condutas. Sendo assim, o julgamento não altera nenhuma norma penal vigente, apenas dá interpretação no sentido de que o conceito de racismo previsto na lei se estende ao fato social “homotransfobia”. Ou seja, todos os projetos de lei que discutem o tema no Congresso Nacional seguem sem encaminhamento. A aplicabilidade do julgamento se limita às decisões dos tribunais e demais órgãos que fazem parte da estrutura do poder judiciário.

As condutas criminalizadas, conforme a decisão, são as “homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém”. Atingem, portanto, os chamados crimes de ódio contra a população LGBT, em duas situações distintas. A primeira se refere à aplicação dos tipos penais previstos na lei do racismo (que também se aplica aos casos de xenofobia e discriminação religiosa), ou seja, um rol de crimes referentes à discriminação de pessoas no acesso a direitos, bens e serviços, no qual se destaca o artigo 20 que considera crime “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito”. Os crimes aí previstos estão mais relacionados ao direito das populações protegidas pela lei, ou seja, os delitos previstos ferem toda uma coletividade. A segunda situação se refere à interpretação do Código Penal para que a discriminação por identidade de gênero ou orientação sexual seja, “na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe”. Ou seja, se aplica àqueles crimes cometidos não apenas com o fim próprio do delito (matar), mas realizados com explícitos requintes de crueldade e quando a sexualidade e/ou identidade de gênero da vítima foi elemento importante na conduta criminosa.

É um julgamento histórico e significativo, por certo, principalmente por proporcionar um amplo debate sobre a discriminação e a violência contra a população LGBT. A repercussão da decisão, o impacto que terá diante dos projetos de lei que estão sendo apreciados no Congresso Nacional e a abertura política para que falemos sobre esse tema são os maiores ganhos que temos com a criminalização.

As manifestações de violência, exclusão e estigma contra a população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais são resultado de uma estrutura imposta pela ordem social heteronormativa e heterossexista. Ou seja, essa estrutura social nos impõe uma hierarquização das sexualidades, em que a heterossexualidade opera como o centro, o normal, a partir do qual as demais formas de expressão da sexualidade humana são apontadas como periféricas ou anormais, não merecedoras de proteção jurídica. O mesmo ocorre em relação às identidades de gênero, de forma aprofundada, eis que pessoas trans estão entre as mais violentadas e cujos direitos – a começar pela própria identidade – são mais negados. Ou seja, a cidadania precária imposta pelo direito à população LGBT ao longo da história é fator que contribui para a violação de direitos dessas pessoas e as coloca em situação de vulnerabilidade. E é essa vulnerabilidade, presentificada nos crescentes casos de violência física e moral, o que justifica a criminalização dos atos de ódio contra LGBTs.

A reprodução dessa lógica violenta se materializa em violações de direitos que não podem ser resolvidas por meio da criminalização. Da exclusão de pessoas trans do mercado de trabalho, passando pela evasão escolar resultado da violência psicológica, até a expulsão de adolescentes de casa pela discriminação no meio familiar: são alguns exemplos das inúmeras dimensões da violência contra essa população, fenômenos que não podem ser resolvidos pela responsabilização penal ou pelo encarceramento do agressor, medidas que são viabilizadas pelo sistema criminal.

Embora a importância de seu aspecto político, a criminalização é uma resposta simplista para um fenômeno social complexo. Não está prevista neste julgamento – e sequer nos projetos de criminalização existentes – toda uma rede de serviços que precisa ser implementada para atender às demandas da população LGBT vítima de violência. Basta pensar nas mudanças que a Lei Maria da Penha trouxe a fim de coibir a violência doméstica e proteger as mulheres vítimas dessa violência, criando um sistema, ou seja, uma política pública, que demanda a existência de delegacias especializadas, servidores sensibilizados para tratar do tema, serviços de acolhimento das vítimas, até as próprias estruturas do sistema de segurança pública que vão receber as notificações de casos de violência.

Devemos, portanto, celebrar a vitória política que a criminalização da LGBTfobia representa no presente contexto de recrudescimento do conservadorismo e de ataque às liberdades individuais. Não devemos esquecer, no entanto, que a recente democracia brasileira só tem garantido direitos da população LGBT pela via judicial, ou seja, de maneira precária. A mobilização dos movimentos LGBT deve se manter na busca de políticas públicas para o enfrentamento da discriminação das sexualidades e identidades de gênero, sobretudo nos estados e municípios, através de ações concretas presentes nas diferentes políticas sociais.

(*) Tamires de Oliveira Garcia é pesquisadora. Mestra em Direito e Sociedade pela Universidade La Salle. Bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Assessora na Comissão Especial de Análise da Violência contra a População LGBT da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, presidida pela deputada Luciana Genro.

Caio Klein é advogado do grupo Somos – Comunicação, Saúde e Sexualidade. Mestre em Ciências Criminais (PUCRS). Membro do Conselho Estadual de Promoção de Direitos LGBT (CELGBT/RS) e Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT).

Nota

[1] O termo é utilizado somente para facilitar a apresentação do tema, uma vez que a expressão passa a ideia de homogeneidade entre as violências sofridas pelos sujeitos que se inserem na sigla, em especial considerando os dados que apontam que pessoas travestis e transexuais são as que mais sofrem violência letal, além de terem negadas suas identidades de gênero. A adoção desse termo prejudica o debate sobre as sexualidades e as identidades, já que a travestilidade e transexualidade são identidades de gênero e não orientações sexuais. No entanto, o uso foi adotado em detrimento do termo homofobia, que deixa de contemplar sujeitos como as lésbicas, as pessoas bissexuais e as/os transexuais.

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