Opinião
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11 de abril de 2019
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19:05

Espanha: tempo de sublevações, tempo de eleições (por Antonio Baylos)

Por
Sul 21
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Espanha: tempo de sublevações, tempo de eleições (por Antonio Baylos)
Espanha: tempo de sublevações, tempo de eleições (por Antonio Baylos)
Antonio Baylos (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Antonio Baylos (*)

As amáveis pessoas que frequentam este blog saberão perdoar a hipérbole que liga a sublevação com o processo de eleição dos representantes da cidadania em seus órgãos legislativos, mas ela se baseia na percepção bastante evidente da importância das eleições de 28 de abril como um momento chave para a resolução da crise democrática que tem suas raízes na grande crise financeira de 2008. Uma resolução que pode levar à consolidação e aprofundamento de um marco institucional profundamente autoritário, ampliando a degradação de direitos civis e sociais, ou que possibilite, ao contrário, um novo espaço público garantidor de conteúdos democráticos básicos e capaz de reverter das posições mais daninhas em matéria social e econômica para as classes subalternas que foram produzidas na Espanha a partir de 2010.

Em uma exposição realizada em Buenos Aires, há cerca de um ano e meio, cujo catálogo me foi presenteado pelo meu amigo Guillermo Gianbelli, Georges Didi-Huberman fez uma larga reflexão – que chamou de “fragmentos” – sobre os atos que nos sublevam, o “broto de liberdade” que se expressa na rebelião, a importância de desenvolver a potência do social frente aos poderes público e privado, e a necessidade de um “tempo de rebelião” como eixo do desejo não satisfeito dos seres humanos desiguais e que sofrem. E um parágrafo, aludia a relação entre o ato de se sublevar e o de rechaçar. É um texto que tem relação com a ideia sustentada na abertura desse texto. Ele diz:

“Não será a evidência das sublevações o gesto mediante o qual rechaçamos certo estado – injusto, intolerável – das coisas que nos rodeiam, que nos oprimem? Mas o que é rechaçar? Não é só deixar de fazer. Não é, fatalmente, confinar o rechaço só no reino da negação. Rechaçar, gesto fundamental das negações, consiste sobretudo em criar dialética: recusando fazer o que nos impõem abusivamente, não podemos (não temos que) nos conformar com isso, evidentemente. Alguém não rechaça certo estilo de vida limitando-se a escolher não viver. Assim, na verdade, a única forma de rechaçar é decidir existir e fazer outra coisa. Ali onde alguns pretendem recusar conformando-se com o “preferia não”, retirando ou diminuindo sua força, outros assume o risco de expor seu rechaço inclusive pelo empoderamento de outro fazer. E quando digo que se expõem, que dizer que não têm medo – desde sua posição subalterna, de seu lugar de não-poder – de “fazer algo” no espaço público, apesar de tudo. Provavelmente é o que Walter Benjamin pretendia significar com a expressão “organizar nosso pessimismo”. Rechaçar é a potência de fazer de outro modo”.

Esta evocação do gesto de rechaço é perfeitamente válida para o momento atual. Nas eleições do final deste mês – que serão seguidas pelas também muito importantes eleições europeias do final de maio – podem se reconfirmar as estratégias de domínio levados a cabo ao longo dos processos de reformulação dos equilíbrios de poder no marco institucional a partir da irrupção da crise e que foram se impondo à base das exigências da chamada governança econômica europeia por meio das políticas de austeridade. Essas políticas condicionaram politicamente o sentido das reformas estruturais que incidiram sobre a “contenção” do gasto público, a reforma constitucional para impor a regra do equilíbrio orçamentário e o pagamento prioritário da dívida antes de qualquer gasto social, as reformas trabalhistas que degradaram as garantias de emprego e o poder sindical, a redução dos benefícios sociais e o endurecimento do acesso às pensões, bem como a adoção de normas enormemente restritivas das liberdades de reunião e de manifestação, além da repressão a greves e grevistas.

O custo das reformas urgidas pela crise pode ser lido, portanto, como um processo de desconstituição de direitos que culmina em uma série crise democrática ainda não superada e que se insere em um processo de mudança de ciclo político na América do Sul (e nos Estados Unidos), junto com a emergência de um “neosoberanismo” político na Europa que possivelmente poderá ser medido eleitoralmente a partir das eleições europeias de maio de 2019.

A situação na Espanha, a chamada “oferta eleitoral” é terrível. A tripartição de uma direita neoliberal e autoritária nega os conteúdos mais importantes do pacto constituinte da Transição democrática, que permitiram a integração das forças de esquerda neste processo, e que podem se resumir no reconhecimento dos direitos civis e políticos, na presença forte de um Estado Social com a previsão de direitos individuais e coletivos derivados do trabalho como elemento central em um compromisso de nivelamento social e na definição da estrutura territorial do Estado como um estado complexo, com uma espécie de federalismo assimétrico desvalorizado. Essa direita ostenta um ideário político que coincide em reduzir o texto constitucional a uma leitura (em chave neoliberal) inconcebível do mesmo, junto com a exaltação da monarquia e de um Estado unitário com expressa intenção de amputar a autonomia política da Catalunha. Todo um programa de reciclagem constitucional reacionária que implica a desconstrução do modelo constitucional de 78.

Frente a essa ameaça real não cabe uma simples posição de rechaço que se limite a denunciar o que está ocorrendo: o aumento da desigualdade, a redução de direitos civis, trabalhistas e sociais. Ante esta profunda crise democrática que pretende transformar nossos sistemas em uma democracia de baixa intensidade, na qual se penaliza a dimensão coletiva da representação do trabalho, é necessário “fazer de outro modo”, ou seja, propor uma alternativa que passa pela (re) regulação da existência social a partir da apropriação do espaço público pelas posições políticas das forças que podem dar voz aqueles que nunca a tiveram desde sua condição subalterna.

De modo concreto, é estratégico – como vem sendo repetido pelas confederações sindicais CCOO e UGT – que se revertam as reformas trabalhistas originadas na crise. Isso não implica retornar ao ponto de partida em que se encontrava a legislação trabalhista em 2009, mas sim reformular no momento atual garantias coletivas e individuais do direito ao trabalho e consolidar um marco institucional forte em torno dos sujeitos coletivos que representam o trabalho. Mas, antes de tudo, é preciso eliminar os aspectos mais daninhos das reformas trabalhistas, o que o governo de Pedro Sánchez não se atreveu a fazer pelo procedimento de urgência, apesar de que, como ficou demonstrado com os últimos decretos leis na Deputação Permanente, teriam sido convalidados. Como diria Didi-Huberman, “o medo se revela como o primeiro inimigo das sublevações, impõe o silêncio e imobiliza os corpos, os gestos, os desejos, as vontades”. Um medo que não se enfrenta com 110 medidas de um programa sem compromissos seguros, como o que apresenta o PSOE.

É necessário rebelar-se e sublevar-se ante um “estado de coisas” que é insuportável. Isso não se manifesta somente por meio do conflito aberto, ou pela tomada das ruas para protestar. A resistência ou o rechaço tem também que se apresentar como ação em sentido positivo, isto é, mediante a intervenção no “mercado eleitoral” consciente de seu caráter meramente mercantilizado – submetido às exigências de valorização marcadas pela financeirização global da economia – mas onde ainda a autonomia relativa do político permite interstícios de ação alternativa em torno de um projeto de “fazer de outro modo”.

Votar nas eleições sobre esta base, a de tentar cooperar a resolução da crise democrática fomentando uma saída que se oponha à preconizada pelos centros de poder privado que dominam a cena política e midiática. Sublevar-se hoje implica também votar pela emancipação pública e privada de cidadãos e pessoas, exigir condições dignas de existência, um trabalho estável e decente. Votar, como diria Fernández Buey, para poder nos tornar pessoas, apesar do capital.

(*) Doutor em Direito pela Universidad Complutense de Madrid; Professor Catedrático de Direito do Trabalho e Seguridade Social na Universidad de Castilla La Mancha – Madrid; Diretor do Departamento de Ciência Jurídica da Facultad de Derecho y Ciencias Sociales de Ciudad Real; Diretor do Centro Europeu e Latino-americano para o Diálogo Social (CELDS). Artigo publicado originalmente no blog do autor.

Tradução: Marco Weissheimer

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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