Opinião
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23 de agosto de 2014
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09:04

O torpor que se abateu (por Carlos Alberto Kolecza)

Por
Sul 21
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O torpor tomou conta do Brasil a partir da edição extra do Repórter Esso. As escolas foram liberando os alunos, o comércio fechando e as fábricas desligando as máquinas. As pessoas caminhavam tontas pelas ruas. Os jipes desobedeciam os sinais à frente de comboios dos quais desembarcavam às pressas soldados para apontar metralhadoras contra locais de maior ajuntamento. Getúlio Vargas estava morto.

Era o desfecho sangrento do drama que o país acompanhava pelo rádio e diante das bancas de jornais. Impotentes para reagir, as multidões dispersas pelas ameaças voltavam a se formar a alguns metros adiante para chorar. Com o sacrifício de Getúlio Vargas – o povo sabia disso embora não pudesse fazer nada -, não desaparecia apenas um governante popular, eleito contra a vontade das elites que em vão, nas eleições de 3 de outubro de 1950, tentaram impingir os candidatos de seu agrado. Não era somente o presidente idolatrado que fora derrubado e, no desespero, se auto-imolou.

A auto-imolação do presidente impediu que os conspiradores da direita completassem o golpe mas não evitou que fosse preparando outro, mais eficaz, contra seu herdeiro, quando fosse a hora. Junto com Vargas, foi ferido de morte também um modelo de desenvolvimento que era o grande alvo das manobras de desestabilização de seu governo.

Desenvolvimento autônomo, comprometido com a distribuição de renda e com a independência econômica do país. Empenhado em estancar a sangria das remessas abusivas de lucros ao exterior e em preservar a soberania nacional. 24 de agosto passou a ser data de luto popular e também dia nacional de conscientização para a luta de libertação do Brasil, profetizada pela Carta Testamento. A mensagem final de Vargas sinaliza os caminhos para o Brasil se reencontrar com seu destino de nação soberana, com desenvolvimento próprio e equilíbrio social. O Brasil de antes, o Brasil pré-Revolução de 30 era um país agrícola, com um governo fraco, um Estado arcaico e um povo sem direitos individuais e sociais.

A República banira a monarquia 40 anos antes mas envelhecera precocemente, esgotada pelos apetites das oligarquias regionais. O presidente saía de um pacto entre os grandes Estados, para servir aos barões do latifúndio. O eleitor – as mulheres não votavam – não tinha outro direito senão o de assinar embaixo na chapa dos coronéis donos de currais políticos.

A primeira sacudida nas estruturas obsoletas da República Velha aconteceu nas greves de 1917, seguidas pelos levantes tenentistas. Getúlio Vargas, vindo do Rio Grande do Sul, que conseguira pacificar depois de décadas de lutas fraticidas, assume o governo com a deposição de Washington Luiz. A fraude nas eleições de 1930 aguçara o grande descontentamento nacional que os revolucionários souberam canalizar. No poder, Vargas, o líder da Revolução, lança as bases de um programa de industrialização e reestrutura o serviço público.

Com ele, o Brasil entra realmente no século 20. Renegocia a dívida externa, impulsiona as economias regionais por meio de uma rede de institutos (café, cacau, açúcar, pinho) e superintendências (marinha mercante, borracha), implanta o sistema de departamentos (DNOS, DNOCS). Remodela o ensino público e institui a Previdência Social, que complementa com uma avançada legislação social. Regulamenta a jornada de 8 horas, cria o salário mínimo e a Justiça do Trabalho, paralela ao Ministério do Trabalho, para mediar os conflitos capital x trabalho.

É no governo Getúlio Vargas que vem à tona a consciência de cidadania, não mais como sentimento abstrato de vagos direitos individuais mas como percepção nítida de um lugar na sociedade. Volta Redonda simboliza o suporte de toda a industrialização pesada que, nas décadas seguintes deslocará a economia do campo para a cidade.

As leis trabalhistas (CLT) são, na prática, a constituição que assegura o direito de ser alguém, com salário em carteira, horário para trabalhar, férias, médico e dentista e pensão na velhice. O acesso à cidadania por si só explica a popularidade. Bate-se pela criação do monopólio do petróleo (Petrobrás) e pelo controle das remessas de lucros ao exterior. Sob constante ataque da reação, veio perdendo apoio, até ser encurralado no Catete.

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Carlos Alberto Kolecza é jornalista e analista político. O texto foi escrito para o jornal Brasil Hoje, em agosto de 1996.

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