Opinião
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5 de julho de 2014
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13:50

A pluralidade étnica incompleta da Copa do Mundo (por David Goldblatt)

Por
Sul 21
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Equipes multirraciais expressam potência dos fenômenos migratórios. Mas pobres e não-brancos estão ausentes nas arquibancadas e nas comissões técnicas

Por David Goldblatt, no The Guardian | Tradução Cauê Seignemartin Ameni | Do Outras Palavras

O rebelde Benzema, Pogba e Sakho, astros da França. Lógica empresarial do futebol aceita negros e árabes entre os astros, mas converteu estádios em espaços para elites
O rebelde Benzema, Pogba e Sakho, astros da França. Lógica empresarial do futebol aceita negros e árabes entre os astros, mas converteu estádios em espaços para elites

As maquiagens étnicas dos 32 times da Copa do Mundo refletem as camadas sedimentares da migração global, nos últimos 500 anos. A destruição colonial, pelos europeus, dos indígenas na América nos dá os times quase inteiramente europeus no Chile, Argentina e México; a Austrália poder considerada uma versão deste fenômeno na Oceânia.

Em grande parte do Novo Continente, a conquista foi seguida pela importação maciça de trabalho escravo africano, o que está expresso na mistura afro-europeia do Brasil, Equador, Honduras, Costa Rica, Colômbia, Uruguai e Estados Unidos; embora neste último país os latinos constituam uma categoria étnica própria. Em todo o continente, o futebol continua a ser um território de mobilidade social para jovens pobres e imigrantes. No Equador, os afro-equatorianos representam apenas 6% da população, mas quase todo o plantel do time.

A mesma lógica acabou funcionando na Europa Ocidental, onde as equipes foram moldadas por duas ondas de movimentos mais recentes. Durante as migrações que acompanharam a descolonização e o longo boom econômico do pós-guerra, a Inglaterra formou uma comunidade africana-caribenha; a Alemanha recebeu trabalhadores turcos e a França absorveu os africanos francófonos; os congoleses representam o mesmo para a Bélgica; os surinameses, para a Holanda.

Em todos esses países, a mudança física da seleção tem servido tanto como um emblema otimista de integração bem sucedida e como um pára-raios para acusações de falta de autenticidade; quem canta ou não o hino nacional antes dos jogos tornou-se uma referência de cidadania para muitos comentaristas de extrema-direita.

Nas últimas duas décadas, novos fluxos de refugiados e migrantes econômicos deixaram sua marca no futebol europeu. Ela apresenta-se no negro Balotelli, o astro indiscutível da Itália; no time suíço, onde quase dois terços dos jogadores têm ascendência imigrante; em jogadores afro-alemães e afro-espanhís. Por outro lado, as equipes mais ao leste – Bósnia, Croácia, Rússia e Grécia –, apesar de suas próprias complexidades étnicas internas, são majoritariamente brancas.

As seleções mais etnicamente homogêneas da competição são Japão e Coreia do Sul, ambos países com pequenas populações imigrantes. No entanto, nas arquibancadas, há evidências abundantes de suas próprias comunidades migrantes – brasileiros japoneses que partiram para as plantações de café de São Paulo no final do século 19 e os coreano-americanos. Estas diásporas, que permanecem em diálogo emocional e pratico com seus países de origem, são melhor representadas pelo Irã e Argélia. O treinador Carlos Queiroz convocou iranianos nascidos na Suécia, Holanda e Alemanha. Dezesseis jogadores da equipe argelina nasceram na França, mas optaram pelo norte da África.

Seja lá o que representem, os jogadores de futebol raramente se reconhecem como imigrantes. Eles fazem parte de um mercado global de trabalho de alta habilidade e remuneração — algo semelhante o que pode ser encontrado em serviços financeiros e profissionais. As quatro equipes da Africa Ocidental – Camarões, Nigéria, Gana e Costa do Marfim – têm apenas seis de seus 92 jogadores em clubes nacionais e quatro deles são goleiros.

A cidadania é negociável. A Croácia e Espanha “adquiriram” respectivamente os brasileiros Eduardo e Diego Costa. Apenas os ingleses e os russos, sem histórico de sucesso na migração futebolística, jogam principalmente em casa, nas ricas ligas domésticas.

Se os campos da Copa do Mundo 2014 são um quadro vivo da diversidade e da complexidade étnica do mundo, não é certo que o mesmo possa ser dito sobre as torcidas ou as comissões técnicas. O holandês Patrick Kluivert é um dos poucos rostos negros entre as comissões europeias. Nenhum time latino-americano tem um técnico de origem africana ou indígena. Gana e Nigéria optaram por técnicos locais, mas Camarões e Costa do Marfim têm europeus no comando.

A Fifa tem investigado pequenos incidentes envolvendo cantos racistas em meio às torcidas da argentina e mexicana e a presença de cartazes de extrema-direita, até mesmo fascistas, entre as torcidas croatas e russas. Mas o mais significativo é que nenhum grupo das arquibancadas compartilha a diversidade étnica de seus respectivos times. É difícil conduzir uma pesquisa demográfica a partir da cobertura televisiva altamente seletiva dos jogos no Brasil, mas a torcida anfitriã parecia incrivelmente branca e a maciça presença colombiana também. Suspeito que o mesmo possa ser dito dos europeus.

Obviamente, a mesma lógica étnica e divisão classes que explica a over-representação de grupos minoritários no futebol profissional explica também sua relativa ausência no caríssimo turismo futebolístico e nos altos comandos da partida.Quando a poeira baixar sobre a Copa do Mundo, a Fifa – muito preocupada com o comportamento das torcidas em relação ao racismo – poderia voltar sua atenção aos mundos privados do racismo institucional e ao dilema mais amplo de tentar organizar um festival universal em que apenas os ricos podem participar.

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David Goldblatt é jornalista do The Guardian e autor de “A bola é redonda: Uma História Global de Futebol” (Penguin).

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