Opinião
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27 de junho de 2014
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08:21

Sobre Esquerda e Direita (por Fernardo Horta)

Por
Sul 21
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Sobre Esquerda e Direita (por Fernardo Horta)
Sobre Esquerda e Direita (por Fernardo Horta)

Não, não são a mesma coisa e não, não estão a mesma coisa.

O desencanto brasileiro pela política têm, no mínimo, três grandes fatores: (1) nossa democracia tem pouquíssimo tempo recente (de 1985 até hoje), (2) fomos ensinados (nos colégios, nas igrejas e pelas nossas famílias) que discutir política é “feio” ou é coisa de “agitador e baderneiro” frequentemente “coisa de comunista”, e (3) tivemos, por um bom tempo, péssimos políticos.

Nada mais fácil para manter as coisas como estão do que ensinar que elas “sempre foram assim”. A naturalização do comportamento político é a grande arma daqueles que não querem ver as coisas mudando. E quem não quer que as coisas mudem? Quem, evidentemente, ganha e vive bem da forma como a sociedade está. Mais do que “situação” e “oposição” políticas, no Brasil temos “situação” e “oposição” histórico-sociais. Aqueles grupos que historicamente controlam as riquezas, os postos de trabalho, o mercado financeiro, a burocracia administrativa, as famílias que se perpetuam no judiciário e no legislativo que criaram um Brasil onde a lei é para poucos, os benefícios para menos gente ainda e o poder restrito a um círculo diminuto, esses – definitivamente – não querem que nada mude.

O medo da mudança foi usado como desculpa para o golpe de Vargas em 1937, para o golpe de 1964 e etc.. Até hoje ainda se sustenta uma estapafúrdia ideia de que havia uma “revolução comunista em curso” que implantaria uma “ditadura” sangrenta no Brasil que mataria nossas “famílias” e “mudaria nossos costumes”. Nessa lunática visão, os militares implantaram uma ditadura sangrenta, mataram várias famílias e mudaram nossos costumes para “nos defender”. E ainda querem comemoração desse absurdo.

Por muito tempo, o termo “esquerda” foi associado aos grupos sociais que queriam mudanças. Ele inicialmente se referia aos jacobinos franceses. Eram a baixa burguesia que lutava contra o regime absolutista na França. O nome vem das reuniões feitas no mosteiro de Saint Jacobs. Esse grupo, quando se reuniram os Estados Gerais (parlamento francês), em 1789, se sentavam todos à esquerda da entrada do prédio. Assim começava a diferenciação direita e esquerda. Politicamente, os que se sentavam à esquerda queriam mudanças sociais.

A definição tornou-se mais complicada quando esse mesmo grupo, que no século XVIII era “revolucionário” e afeito às mudanças (a burguesia) ao tomar o poder e consolidar-se durante o século XIX tornou-se conservador. No afã de manter os privilégios e a dominação político-econômica que adquiram, a burguesia passou a ser refratária às mudanças. Basta dizer que a Inglaterra só dá direito de voto aos trabalhadores no final do século XIX (1867) e às mulheres em 1928. Na clássica leitura de Karl Marx, a burguesia teria perdido seu caráter revolucionário e qualquer desejo de mudança, assumindo esse lugar na história o proletariado.

A percepção da “luta de classes” ordenou a interpretação histórica desde o século XIX e foi responsável pela história de todo o século XX. Pode-se ver que as grandes guerras, as revoluções e a maior parte da política internacional do século XX foram feitas pelo medo da luta de classes e da revolução (cristalizado no anticomunismo) ou pela paixão fervorosa por realiza-la. Nesse sentido, o termo esquerda e direita ganharam contornos economicistas sendo aqueles que defendiam a primazia do capital nas relações sociais chamados de direita e os que defendiam a primazia da força de trabalho, esquerda. Durante o todo o século XX, essa divisão funcionou razoavelmente bem, e ainda que existissem uma miríade posições políticas “mais à esquerda” ou “mais à direita”, o referencial do trade-off básico da economia (capital vs trabalho) era uma forma segura de fazer a divisão.

Veja que ditaduras podiam ser de esquerda ou de direita, e a violência foi usada amplamente por ambos os espectros políticos durante todo o período conhecido como Guerra Fria. A questão do uso da violência e da democracia embaralharam um pouco as coisas. Primeiro porque existia um discurso, repetido à exaustão, de que a Guerra Fria era a luta do “mundo livre” contra “os regimes ditatoriais” e aí se sobrepunha a questão de direita e esquerda para, através de um silogismo falso, estabelecer que TODA a esquerda era ditatorial e TODA a direita defensora da liberdade. Essa visão maniqueísta do mundo, fortalecida pela ignorância dos processos históricos e políticos embalou gerações. Não é difícil ver ainda hoje esse tipo de análises que não conseguem passar da superfície desses conceitos e fazem associações totalizantes com cores, símbolos, ideias ou quaisquer coisas que lhes venham à cabeça. Esses analistas vivem ainda no mundo da Guerra Fria, são anacrônicos e fadados ao esquecimento histórico. O mundo, mesmo no auge da Guerra Fria, NUNCA se resumiu à luta dos cavaleiros Jedi contra o Império.

O século XXI tornou as coisas ainda mais confusas. Primeiro pelo fim do chamado “socialismo real” com o desmantelamento da antiga URSS. O capitalismo, após breve período de festas, também não conseguiu gerar respostas para a humanidade uma vez que as perguntas haviam mudado. O surgimento dos movimentos ecológicos, feminista com grande força, e pós-coloniais trouxeram novas demandas para as quais, ao que parece, a sociedade capitalista não estava preparada. Para piorar, o processo de desindustrialização e a globalização fizeram a pujança interna dos governos ocidentais ser pulverizada. A pobreza não era só um efeito do “atraso” da África ou da “má gestão totalitária” do leste europeu. Ela brotava na região dos grandes lagos americanos, nos subúrbios de Nova York ou Londres. O capitalismo não entregava mais aquilo que havia prometido durante a luta contra o comunismo. O neo-liberalismo não era capaz de promover um “estado de bem estar social”, assim como não era capaz de proteger o planeta da degradação (mudando hábitos de consumo), ou oferecer segurança à diversidade cultural do mundo. A máquina de homogeneização que havia se tornado o “mercado” e seu insaciável apetite pela lucratividade despertaram novos movimentos de contestação que não mais podiam ser contidos apenas nos termos “esquerda” e “direita”.

O processo de autofagia que a esquerda mundial foi lançada após a queda da URSS (que é verdade havia começado ainda na década de sessenta do século passado com o chamado relatório Kruschev) provocou o ressurgimento dos movimentos de crítica pelo mundo. Agora não mais balizados pela ideia da “revolução”, mas pela busca de uma sociedade mais igual. O stalinismo soviético foi relegado ao papel de “modelo a não ser seguido”, mas o bom e velho Marx, com sua análise sobre o capitalismo, continuava atual. Especialmente nos anos 90 com os processos de globalização, as fusões corporativas, e o domínio político e midiático do capital. O objetivo, agora, era resgatar o sentido primeiro das lutas do século XIX, uma sociedade onde todos tenham recursos, oportunidades e voz, para que possam gozar de sua existência. Se a natureza não é privada, por quê alguns indivíduos podem usufruir desta natureza de forma extrema (a ponto de colocar em risco a sobrevivência do planeta) para viverem de forma mais rica que os antigos imperadores romanos ou mesmo os faraós, e outros indivíduos – tão humanos quanto os primeiros – não têm, desta mesma natureza, o direito mínimo de se alimentar?

Como todas as respostas até agora providas pelo sistema capitalista são insuficientes, s esquerda se tornou uma forma de luta filosófica, social e histórica, muito mais do que econômica. Não se trata mais de mudar sistemas através de revoluções políticas. Trata-se de olhar os cantos do mundo em busca daqueles que nada desse mundo têm. Trata-se de entender a vida como finita e, portanto, todos dentro dela tendo os mesmos direitos. Trata-se de entender o Estado como o garantidor das condições mínimas para sobrevivência de sua sociedade. O Estado para a esquerda é subalterno de sua sociedade e não comandante dela. Toda uma nova gama de conceitos foram acrescidos às lutas da esquerda. Conceitos como “empoderamento”, “sujeito de direitos”, “sustentabilidade” e etc. A ideia de igualdade agora é muito mais abrangente, que não mais se circunscreve ao “modo de produção”, e transpassa a própria existência de todos e de cada um. Democracia, para a esquerda, não existe sem igualdade social real. Não apenas a igualdade jurídica, falsa e determinada, como uma bondade dos “iluminados” para com o povo, ou a igualdade eleitoral política, da mesma forma benevolente. Democracia não existe sem comida. Sem educação. Sem um sonho de vida.

Voltamos a resgatar os valores mais básicos dos escritos de Marx e mesmo de Lênin. Aqueles valores, agora depurados da violência, do evolucionismo, e da luta fratricida, hoje compõem o cerne do que é esquerda. E a direita, sem respostas, sem projetos e sem renovação, se forma por exclusão. É por isso que hoje ninguém mais se declara “de direita”. Se escondem sob novos nomes como “democratas”, “liberais”, “humanistas” e etc. Reproduzem, entretanto, velhas ideias e velhos valores. Paradoxalmente, a esquerda “perdeu” a Guerra Fria e foi “vencida pela história”, mas foi a direita quem parou no tempo.

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Fernando Horta é historiador, professor, doutorando Relações Internacionais UNB.

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