Opinião
|
16 de junho de 2014
|
08:52

O que é “desdolarização”? (por Fernando Horta)

Por
Sul 21
sul21@sul21.com.br

Desde 2010 o ministro Guido Mantega vem defendendo a mudança do dólar como padrão moeda da economia mundial. Recentemente, segundo alguns analistas em função da crise da Ucrânia, essa ideia tem ganhado força entre Rússia, China, Brasil e África do Sul (os BRICS) sob o discurso do comércio entre estes países passar a ser feito em moeda nacional (Yuan, Rublo ou Reais). Mas exatamente o que é isso e quais as implicações disso para o mundo?

A história começa um pouco mais lá atrás, ainda no final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) quando os EUA saíram definitivamente da condição de potência regional para superpotência, em especial pelo fato de terem sido os credores do mundo europeu em guerra e praticamente não terem sofrido destruição física no seu território. Enquanto a Europa sai da guerra devastada física e economicamente, os EUA se tornam o país com mais dinheiro a receber. A consolidação disso se dá com a adoção do chamado “Sistema de Bretton Woods” que nada mais era do que uma série de acordos e instituições internacionais (FMI, GATT, etc.) que tinham por função gerir a economia mundial, de forma mais ou menos padronizada e centralizada. Não sem alguma resistência, o dólar passa a figurar como moeda de referência em termos mundiais, sendo escolhida para aparecer em contratos comerciais privados ou estatais. Em princípio, vigorava a ideia do padrão-ouro, ou seja, todo o dinheiro que um país teria em forma de moeda deveria corresponder à quantidade de ouro que esse país possuía como “lastro”. É bem verdade que existiam cálculos e ajustes em função das pressões de mercado, mas em resumo o lastro-ouro era bem palpável.

A coisa começa a mudar em 1971 quando os EUA através do presidente Richard Nixon dão um verdadeiro “calote” no mundo. Vários países europeus juntaram os dólares circulantes em suas economias e anunciaram a intenção de trocar pelo valor ouro correspondente com os EUA. Isso fortaleceria as moedas locais e, por conseguinte, enfraqueceria a economia americana. A intenção era diminuir a dependência europeia da moeda americana. Eis que o presidente Nixon informa que não realizaria essa troca (prevista no GATT) e que a partir daquele momento não mais os EUA usavam o lastro-ouro, mas sim o PIB como referência de riqueza. Ou seja, o total de dólares circulante no mundo não era mais apenas ouro em Fort Lauderdale, mas o total do PIB americano. A Guerra Fria e a “ameaça comunista” eram os grandes trunfos norte-americanos que, àquela altura, já tinham disseminado bases por toda Europa e Japão. São bem conhecidas, por historiadores e economistas, as “chantagens” norte-americanas para que países capitalistas, como a Alemanha e o Japão, aceitassem acordos comerciais prejudiciais às suas economias (e portanto favoráveis aos EUA) e mantivessem o dólar como referência comercial e financeira mundial. O argumento americano era que o “custo” militar de defesa do “mundo livre” estava pesadamente sobre si e alguma forma de retorno deveria haver.

Também na década de 70 o déficit interno norte-americano começou a subir muito e o financiamento desse rombo tinha como âncora a emissão de moeda. Claramente hoje a quantidade de moeda americana circulante extrapola muito o PIB americano. Em qualquer economia nacional isso significaria desvalorização monetária e provocaria desconfiança do “mercado” e inflação. A solidez da economia americana (ao menos até 2008) e a força político-militar da América do Norte mantinham essas questões fora de discussão pública. Internamente, entretanto, vários economistas já diziam que “nenhum país deveria ter o privilégio de ter a moeda mundial” era um favorecimento demasiado para uma “concorrência livre e justa” dentro da economia capitalista mundial.

A desregulação da economia americana e o liberalismo exacerbado levaram à crise dos derivativos de 2008, o que colocou o mundo em alerta sobre as bases macro-econômicas norte-americanas. Em 2010 a zona do euro, embora por motivo diverso, sofreu também pesadas crises fazendo com que países chamados “emergentes” entendessem que subir a montanha do desenvolvimento pelas cordas monetárias do dólar ou do euro era um risco muito grande. A gota d’água foi realmente a postura americana internacional. Ainda sentindo-se xerife do mundo, o cowboy americano se posta a fazer exigências em todos os continentes com padrões e alinhamentos questionáveis. Apoiando ditaduras e países que desrespeitam os direitos humanos quando lhe convém, mas usando esses argumentos para atacar China e Rússia, por exemplo, também ao seu bel prazer. Os rebeldes da Síria recebem a chancela de “legítimos” pelos EUA enquanto que os rebeldes da Ucrânia não. Até virarem os olhos para o florescimento (não recente) do neo-nazismo na Europa Oriental os americanos estão fazendo para não darem aos Russos desculpas de atuação na região. Um verdadeiro “revival” anacrônico da Guerra Fria. Revistas de Política Externa americanas sugerem desde ação armada contra China e Rússia até “endurecimentos estratégicos” na tentativa de manter uma hegemonia em queda.

Recentemente os EUA usaram sua influência internacional para passarem sanções contra a Rússia e isso foi a gota d’água. China e Rússia, dois dos alvos preferenciais da política americana, estreitaram relações por meio de acordos de comércio de energia. Isso resolve muito dos problemas dos dois países sendo a Rússia fornecedora de gás (e precisando de mercado) e a China compradora. O montante do contrato entre as duas é de US$ 400 bilhões de dólares. Isso apenas nos custos de produção e envio. O valor será maior. Além dele, ainda existem outros contratos comerciais laterais sendo acertados. Em outra frente, Rússia e China trabalham para tornar os BRICS mais do que um aglomerado de letras e com a proposta da criação de um “Banco Mundial dos BRICS” realmente passarem a ter poder de fogo internacional. O detalhe disso tudo é que esses valores, embora eu os tenha representado em dólares, serão pagos em moeda nacional dos países. Ou seja, começa internacionalmente um movimento de exclusão do dólar como padrão comercial. E já começa em contratos entre as maiores economias do mundo e com valores estratosféricos.

Os críticos argumentam que isso não irá adiante, pois a China (e mesmo o Brasil) tem quase a totalidade das suas reservas internacionais em dólar. Uma redução do valor do dólar impactaria imediatamente suas economias. A China é o ente estrangeiro que detém maior quantidade dos bônus do tesouro americano. Sim, a China comunista vem financiando por meio de compra de dívidas do governo americano uma parte da felicidade capitalista do povo americano. Estimativas divergem sobre o total desse montante, alguns dizem que é entre 18% a 30% da dívida pública americana, outros apontam números mais expressivos. O que os analistas têm esquecido é que a economia Chinesa é majoritariamente produtiva industrial enquanto a economia americana há muito já se sustenta nos ganhos financeiros e de serviços. O conhecido fenômeno de “desindustrialização”. Nesse sentido, embora o impacto da “desdolarização” seja grande para todo mundo, pode ser comparativamente menor para China do que para os EUA, especialmente no médio prazo.

O que China e Rússia precisam definir é se estão dispostos a pagar esse preço econômico-financeiro para atingir em cheio o império americano. Saddam Hussein, por exemplo, tentou isso antes do ataque americano ordenou que o petróleo iraquiano não fosse mais comercializado em dólar e sim em euro. Em uma semana, a moeda europeia acumulava significante alta em relação ao dólar. Existem interpretações que colocam nesse fato a decisão americana de retirar Hussein do poder e rever os contratos petrolíferos. O Brasil não está em posição ainda de apoiar a “desdolarização” de forma completa, mas talvez não tenha força para contê-la. Ainda é uma incógnita qual será a reação americana se essas medidas se aprofundarem. Uma coisa é certa, parece que estamos vendo uma mudança grande no mundo. Hoje eu diria para você trocar os dólares que tem por reais e não por yuans. E ficar atento ao movimento de China e Rússia sobre os estreitamentos de laços. Todos, entretanto, esperamos que, qualquer que seja a decisão desses países ou dos BRICS, os EUA saibam aceitar os efeitos disso internacionalmente ou, realmente, as coisas podem ficar feias.

.oOo.

Fernando Horta é historiador, professor, doutorando em Relações Internacionais UNB

Sul21 reserva este espaço para seus leitores. Envie sua colaboração para o e-mail op@homolog.homolog.sul21.com.br, com nome e profissão.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora