Passado o período de acomodação do imaginário coletivo, sem o devido estímulo midiático (que se deslocou para outro caso rumoroso, ocorrido com o assassinato de um menino da classe média alta de Três Passos) e incentivados pela impunidade em relação a danos coletivos similares, os opositores da severidade da chamada Lei Kiss encontram espaço generoso e terreno fértil para lançar falsas questões econômicas e financeiras, sobrepondo-as ao objetivo essencial da nova legislação de prevenção contra incêndios, que é salvar vidas.
A dita Lei Kiss, de atualização do regramento de segurança, proteção e prevenção contra incêndios no Rio Grande do Sul, evidenciou a agilidade da resposta institucional à demanda da sociedade gaúcha, chocada com a tragédia inaceitável na casa de shows de Santa Maria, carregada de irregularidades no tocante ao seu licenciamento e na proteção contra sinistros. E correspondeu às expectativas das exigências da comunidade por rigor, clareza, responsabilizações e justiça no tratamento do tema desencadeado há 15 meses com a morte nas chamas e na fumaça da boate, de 242 pessoas, a maioria recém no início da etapa adulta de seu período de existência.
Assessor técnico da construção da chamada Lei Kiss, acompanhando a seriedade, o esforço e a excelência profissional que predominou no amplo debate e na cuidadosa elaboração de uma nova e consistente legislação, no âmbito do poder legislativo gaúcho que aprovou, por unanimidade, o documento transformado em lei 14.376 ainda no ano passado pelo executivo riograndense, tenho uma preocupação que julgo bastante pertinente.
Observando as manifestações – açodadas porque a legislação sequer foi regulamentada para ser aplicada – reivindicando “flexibilização” entoadas por entidades públicas, que congregam prefeitos e legisladores, e por organizações de empresas privadas que têm no lucro sua finalidade orgânica, temo que se debite a necessidade de enfrentamento dos riscos de vida da população e especialmente dos jovens, em edificações inseguras, a uma contabilidade meramente matemática restrita ao campo das finanças.
Neste caso simplesmente se retrocederá ao cenário anterior, de licenciamentos provisórios e ilegais, quando não apenas virtuais, sem projetos físicos, ameaçando a integridade física de todos.
O passado não terá nos ensinado nada. Ou melhor, diante dos fortes argumentos do poder financeiro, nos ensinará tão somente que a vida humana vale muito pouco, quase nada.
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Anderson Nunes dos Santos é assessor parlamentar da Comissão Especial de atualização da lei de segurança, prevenção e proteção contra incêndios no RS.