Opinião
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17 de abril de 2014
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22:40

Gabriel García Márquez (por Luís Augusto Farinatti)

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Gabriel García Márquez (por Luís Augusto Farinatti)
Gabriel García Márquez (por Luís Augusto Farinatti)

220px-Gabriel_Garcia_MarquezDe todos, de absolutamente todos, nenhum escritor foi mais meu do que Gabriel García Márquez. Nenhuma leitura jamais me deu tanto prazer quanto quatro ou cinco de seus livros. Seu ritmo de encantador de serpentes, de flautista de Hamelin, me pegava já na primeira nota. Certa vez ele declarou, em um documentário, que o texto precisa estabelecer um ritmo respiratório no leitor; se o ritmo se quebra, a magia se vai.

Se vale a explicação de Nabokov de que um escritor é um pouco contador de histórias, um pouco um mago e um pouco professor, não há dúvidas que as duas primeiras faces eram mais fortes no colombiano. Tinham a força da explosão de uma estrela. Inauguravam universos, atraíam, colavam a vida do leitor em seu tempo e espaço.

Em uma entrevista, García Márquez declarou que decidiu escrever literatura quando leu a primeira frase de “A Metamorfose”, de Kafka. Afirma ter pensado: se a literatura é capaz disso, então ela me interessa. Foi exatamente a mesma sensação que tive ao ler seu volume de contos “Os Funerais da Mamãe Grande”. Devo tanto a esse livro que nem sei como descrever.

Tem razão o Charlles Campos quando diz que os últimos textos do colombiano não conseguiam manter a qualidade. Alias, nesse texto, Charlles  diz muito do que eu gostaria de dizer. Eu achei “Memória de Minhas Putas Tristes” um livro muito fraco. Mas os grandes livros seguem lá, brilhando: Cem Anos de Solidão, Os Funerais da Mamãe Grande, O Outono do Patriarca, O Amor nos Tempos do Cólera, A incrível e triste história da cândida Erêndira e sua avó desalmada.

Eu não vou lamentar a morte de García Márquez. Ele viveu quase 90 anos, construiu mundos incríveis, agora estava muito doente. As pessoas têm o direito de morrer. Ficam comigo a mulher que chega a uma cidade estranha, à hora da sesta, com um maço de flores enroladas em jornal, para ver o túmulo de seu filho ali assassinado; o dentista que fez o alcaide tirano pagar vinte mortos; um amor que esperou uma vida inteira para se realizar; o pequeno povoado de pescadores que, em uma manhã iluminada, vê chegar até ele, na praia, o afogado mais bonito do mundo; a menina Rebeca carregando para onde fosse um saco com os ossos de seus pais; o Padre Antônio Isabel del Santíssimo Sacramento del Altar Castañeda y Montero; o ditador que vendeu o mar de seu país para pagar a dívida deixando uma paisagem de cratera lunar após a praia; a mãe do ditador, Bendición Alvarado, que nunca soube que era a mulher mais rica da pátria, não entendia porque falavam tão mal do seu filho e estendia as roupas para secar nas sacadas do palácio do governo; o mesmo ditador que dava a abrigo a outros ditadores exilados, expulsos de seus países por algum usurpador, e depois dava asilo ao usurpador e ao usurpador do usurpador, e jogava xadrez com eles nos finais de tarde, apenas pelo regozijo de saber que não era um deles; o Coronel Aureliano Buendía gastando todo o seu esforço em fazer e desfazer peixinhos de ouro nos fundos de casa; o Coronel Aureliano Buendía, que promoveu trinta e duas revoluções armadas e perdeu todas; o Coronel Aureliano Buendía, que, muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, haveria de se lembrar daquela tarde remota em que seu avô o levou para conhecer o gelo.

Não lamento a morte de García Márquez. Lembro dele com alegria. Fico feliz porque ele existiu e fez tudo o que fez. E porque tenho seus livros aqui comigo.

Luís Augusto Farinatti é históriador. Mantém o blog Terra dos Muitos no Sul21.


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