Opinião
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27 de agosto de 2012
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15:31

Bendita degola

Por
Sul 21
sul21@sul21.com.br

Por José Mário de Carvalho

Um cirurgião do passado que visitava o quarto de um idoso em quem fizera na véspera uma traqueotomia de urgência ouviu dele mal pronunciada uma única palavra a um tempo acusatória e de alivio:”Degolador!”  Depois ele soube que o paciente tinha sido testemunha de terríveis e covardes degolas  que se tornaram marca registrada de certas revoluções do Rio Grande do Sul.

Foi inspirada e imediata, além de heróica, a atitude do cirurgião local Luciano Bastos Moreira ao socorrer o senhor engasgado com um naco de carne com instrumentos improvisados e disponíveis no chão de uma churrascaria. Penso que tenha sido também fruto de registros em sua memória de palavras de famoso clinico dos saudosos cursos anuais de medicina de urgência da equipe do Hospital de Pronto Socorro Municipal. Ele dizia enfàticamente, que em situação como essa que se apresentou ao Dr. Luciano, não deveria o médico titubear em usar a tão comum  lâmina de barbear gilete que era até carregada pelos escolares para apontar o lápis.

O episódio poderia servir para divulgar e chamar a atenção da população para uma situação que não é tão invulgar como o engasgo com pedaços volumosos de carne, em casa ou em público. Serve também para mostrar que existem outras manobras menos invasivas e que podem ser usadas por qualquer pessoa bem informada. Num passado recente um médico norte americano se tornou famoso pela intensa campanha que fez na mídia para divulgar a manobra que leva seu nome e que consiste em abraçar o paciente pelas costas e fazer súbita e forte compressão da base do tórax e que pode expelir o tampão de carne.

A divulgação desta e de outras manobras que até podem evitar a bendita degola pelo menos poderia dissociar a palavra degola de um passado que em nada nos orgulha. Um livro que conta as histórias da degola gauchesca traz desenhos toscos, mas muito ilustrativos do modo como se procedia ao ato. Enquanto dois capangas musculosos seguravam a vitima pelos braços estendidos, o degolador por trás o segurava pelos cabelos e passava o facão afiado pela traquéia e pelas carótidas. Quando o sangue começava a jorrar soltavam o infeliz que tentava sair correndo e aos pinotes desabava alguns passos adiante. Crueldade e covardia.

Desde antes da traição de Porongos, temos dívida com a população negra do estado: a devolução das terras dos quilombolas, a degola e a escravatura que muitos tentam minimizar. Talvez os negros queiram cobrar um dia essa conta. Esperarão até se tornarem maioria enquanto usufruem as cotas de educação superior?

José Mário de Carvalho é cirurgião aposentado.

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