Opinião
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17 de julho de 2012
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14:18

Será justo desvincular as cotas raciais das sociais na UFRGS?

Por
Sul 21
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Por Laura Sito* (com colaboração de Luanda Sito**)

Aprofundar os avanços relacionados à diminuição da desigualdade racial é crucial para um maior êxito da política de ação afirmativa. Exatamente, neste sentido, a desvinculação das cotas raciais das sociais é uma medida necessária para UFRGS. Afinal, não são apenas os negros egressos de escola pública que sofrem racismo, mas todo sujeito reconhecido socialmente como negro.

Ao longo da história, muitas vezes, o conhecimento acadêmico serviu para manutenção das estruturas de poder em nossa sociedade.No início do século XX no Brasil, inclusive, auxiliou na criação de políticas de restrição do acesso de negros à educação – tal como a Reforma de Rivadávia Corrêa, que através do Decreto nº 8.659/1911, concedeu maior autonomia aos diretores de escolas que instituíram taxas e exames para admissão no ensino fundamental e superior, impedindo que a população negra ingressasse nas escolas. Ademais, em diversos momentos, a academia embasou teorias de segregação racial para com a população negra, destacando-se os séculos XVIII e XIX, período em que cientistas como Buffon, Voltaire, Gobineau e Nina Rodrigues propagaram teorias de hierarquização e classificação de seres humanos pela raça (nas quais os brancos situavam-se na parte de cima da pirâmide e os semitas, os ameríndios e os negros compunham os estratos mais baixos da sociedade). Atualmente, teóricos latino-americanos dos Estudos Decoloniais desvelam a manutenção dessas ações na produção intelectual latina (logo, também brasileira), principalmente com a exclusão das formas de conhecimento de origens afroindígenas do espaço acadêmico.

Se o Estado Brasileiro restringiu o acesso de suas populações negras e indígenas ao capital cultural em diversos momentos apenas pela sua cor da pele, este é o momento de fazer sua reparação frente a estas ações pretéritas. Para termos de fato um Brasil de/para todos, acreditamos que as políticas reparatórias são imprescindíveis.

A Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na próxima sexta-feira (20/07), apreciará o relatório de avaliação dos cinco anos do Programa de Ações Afirmativas cujo propósito é apontar melhorias para o Programa. Nos últimos anos, o Brasil viveu importantes avanços em direção à luta contra o racismo: Lei 10639/2003 e 11.645/2008 (obrigatoriedade do ensino das histórias e culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas), aprovação do estatuto da igualdade racial, da PL 180/08 (reserva, no mínimo, 50% das vagas de toda a universidade federal com critério social e racial) que tramita no senado, entre outras políticas. Contudo, ainda temos um longo caminho. Décadas de luta do movimento social negro resultou também na implementação de programas de ações afirmativas em diversas universidades federais, como a própria UFRGS, o que garantiu um acesso mais democrático ao ensino superior para estudantes oriundos das classes populares, negros e/ou indígenas a universidades públicas, fazendo com que nossas instituições de ensino refletissem a diversidade socioeconômica e cultural de nossa sociedade. Mas chega o momento de análise dos reais avanços da política.

O debate da implementação das cotas raciais/sociais como promoção da igualdade é um debate que tramita com muitas polêmicas na sociedade. As contestações dos setores contrários a essa política levaram inclusive o debate ao STF, que ao final teve um resultado extremamente significativo. A votação do Supremo pela constitucionalidade das cotas raciais, além de ter garantido a permanência da política, ressaltou a necessidade de políticas que revertam às desigualdades geradas pelo racismo no Estado brasileiro. Como argumentou o Ministro do Supremo, Sr.Luiz Fux, em sua declaração de voto:

a opressão racial dos anos da sociedade escravocrata brasileira deixou cicatrizes que se refletem na diferenciação dos afrodescendentes, especialmente na escolaridade. Os negros deixaram de ser escravos de um senhor para ser escravo de um sistema. A construção de uma sociedade justa e solidária impõe a toda coletividade a reparação de danos pretéritos perpetrados por nossos antepassados adimplindo obrigações jurídicas.

A expressão da política de cotas com recorte étnicorracial, assim como da própria votação que aprovou a constitucionalidade do sistema, materializa a vocação das cotas raciais como uma medida de reparação dos efeitos do racismo – compreendido como um conjunto de ideias que classifica, organiza e hierarquiza as pessoas a partir da ideia de raça – sofrido pela população negra e indígena. Neste sentido, fica nítida a diferença do propósito das cotas sociais para as raciais: enquanto aquela visa à reparação das desigualdades socioeconômicas, esta visa à reparação das condições de desigualdade atual entre a população branca e as populações negra e indígena. Em síntese, essa desigualdade afeta a produção de conhecimento e a construção de uma sociedade justa em todos os âmbitos da vida social!

O cenário que se apresenta para UFRGS é optar por avanços no seu Programa de Ações Afirmativas, o primeiro implantado no Estado. Ainda que seja uma política que interesse à sociedade maior, está nas mãos do Conselho Universitário (constituído por técnicos, discentes e, em sua maioria, docentes; não tão diversificado em sua composição étnicorracial) a possibilidade de fazer com que a universidade tenha um dos sistemas mais avançados do país. A riqueza é a possibilidade que possuem de aproveitar o acúmulo das outras experiências de ações afirmativas no país, com períodos e realidades diferentes; a primeira universidade pública a implementar o sistema de cotas já completará dez anos.

Portanto, avançar em direção à promoção da igualdade racial está posto em nossa frente, é necessário optar por ações que de fato caminhem nesta direção de forma mais intensa no âmbito acadêmico. Desvincular as cotas raciais das sociais se coloca como um primeiro passo efetivo de enfrentamento ao racismo em nossa sociedade. O resto é seguir protelando por mais alguns séculos o Brasil da democracia racial.

*Laura Sito é graduanda em Jornalismo pela UFRGS, cotista, diretora de Direitos Humanos da UNE e integrante do Fórum de Ações Afirmativas da UFRGS.

**Luanda Sito é doutoranda em Linguística Aplicada pela UNICAMP e integrante do IACOREQ-RS e do Fórum de Ações Afirmativas da UFRGS.


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