Opinião
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9 de maio de 2012
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13:42

A Esquerda europeia

Por
Sul 21
sul21@sul21.com.br

Por Mário Soares

Não sou profeta. Mas espero que a Esquerda europeia saiba aproveitar a oportunidade que a crise global, paradoxalmente, lhe oferece, para se refundar (socialistas, sociais-democratas, trabalhistas, verdes) e, em diálogo estreito com o movimento sindical, readquirir o lugar que teve, no passado, nos Governos europeus e que, infelizmente, para o futuro europeu, tem vindo a perder.

Também espero, embora com menor convicção, confesso, que a Democracia Cristã, a outra família política que, com o socialismo democrático, ajudou a construir e a desenvolver o projeto europeu, possa reaparecer, com força, para o progresso da Europa. Porquê menos convicção? Porque a Igreja de Bento XVI não é a mesma de Leão XIII, de João XXIII ou de Paulo VI do Concílio Vaticano II. Apesar de manter, como não podia deixar de ser, a doutrina social da Igreja – e combater a democracia liberal, em favor da democracia social – evita, creio, que se crie, como no passado, um relacionamento partidário estreito que lhe pode retirar a simpatia dos outros movimentos políticos…

De qualquer modo, tanto a social-democracia como a democracia cristã perderam importância política na Europa, nos últimos anos, em favor do populismo ultra-conservador e da ideologia neoliberal. Alguns autores falam de nacionalismo egoísta extremo e do possível regresso a uma forma de fascismo, embora de cunho diferente do passado, como no caso de Mussolini ou de Hitler…

Foi no que deu, depois do colapso do universo comunista, de se afirmar a globalização desregulada e do reaparecimento em força da ideologia neoliberal: criou-se um capitalismo sem valores éticos, dito de casino, e uma economia virtual – e não real – expressa nos paraísos fiscais, nos mercados usurários e nas empresas de ‘rating’, que dominam os Estados, afirmando como único valor, o dinheiro.

Foi esse economicismo que desencadeou a crise global, a qual começando nos Estados Unidos, nos anos finais de Bush, Filho, contagiou depois a União Europeia. Os partidos europeus ultraconservadores dominantes adoptaram a mesma ideologia que provocou a crise, para agora a quererem dominar, através da austeridade, obedecendo aos mercados e, para tanto, destruindo o Estado Social e continuando a favorecer os grandes interesses egoístas de sempre…

Tarefa que está a revelar-se impossível, uma vez que a crise se prolonga e agrava, todos os dias, demonstrando à evidência o erro colossal que os dirigentes europeus, por incapacidade ou medo, estão irresponsavelmente a cometer ou a deixar cometer. Assim, se a União, perdido o sentido da solidariedade inter-Estados europeus, não mudar de paradigma e de comportamento, cairá inevitavelmente no abismo, como já advertiram grandes europeístas como: Helmut Schmidt, Helmut Kohl, Jacques Delors, Romano Prodi, Felipe Gonzalez e muitos outros.

Nos últimos tempos, a União Europeia perdeu o Estado de bem-estar, tornou as pessoas mais desiguais, abandonou o valor da coesão social, fez reformas – ou, melhor dito, contra-reformas – que afetam gravemente idosos e doentes, cortou dinheiro ao ensino para todos e às universidades, pôs em causa o valor da dignidade no trabalho, do Serviço Nacional de Saúde, do Estado de direito e, fundamentalmente, a própria paz. Deixaram-se cair os valores éticos e permitiu-se a concentração do dinheiro – como querem os neo-liberais – cada vez mais, nas mãos dos privilegiados. Assistimos, assim, não só a um recuo civilizacional imenso, como ao aumento do desespero, provocado pelo desemprego e pelo empobrecimento da classe trabalhadora e da própria classe média. O que pode gerar muita agitação violenta, o aumento dos suicídios (como tem vindo a acontecer) e cada vez mais criminalidade organizada.

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Refundar a Esquerda

É neste ponto que entra a necessidade da refundação da Esquerda Socialista. Não só para procurar manter o Estado Social e a sociedade de bem-estar, que nos trouxe a paz e o bom entendimento, nos últimos trinta anos, antes da crise, como terá que reduzir a austeridade, ao estritamente necessário, e diminuir drasticamente a recessão e o desemprego. Dois flagelos que temos perante nós, europeus. Na verdade, só com um novo modelo de desenvolvimento – que ponha as pessoas em primeiro lugar e não o dinheiro – poderemos esperar melhores dias e sair da crise, que tanto nos afeta. Hoje, já não se trata só de países como a Grécia, a Irlanda ou Portugal serem as vítimas da crise. É toda a União Europeia que está à beira do caos, a começar pela Itália, a Espanha, a França, o Reino Unido e a própria Alemanha, que estão a perceber – e de que maneira! – onde o neoliberalismo nos meteu…

Claro que a Esquerda é hoje diferente do passado. Precisamos de voltar aos nossos valores, sem perder de vista as novas carências sociais e políticas de uma sociedade em rapidíssima mudança.

Estamos num momento em que a União Europeia, numa crise profunda e a querer sair dela, é ainda governada por aqueles que a provocaram. É indispensável e inevitável mudar. Porque se assim não for, assistiremos à desagregação e ao caos. Ao contrário do que se passava há um ano, o “Povo europeu” tem hoje uma percepção clara do beco sem saída em que o meteram. E quer a mudança. Mas qual? E em que sentido? Tem ainda desconfianças e dúvidas. Por isso não tem estado ainda mobilizado, a não ser para o protesto.

É, por isso, que a família socialista – se quiser subsistir ela própria – tem de aproveitar a Oposição em que se encontra, para definir, com clareza, a alternativa que se impõe à austeridade que nos livrará da crise e que pode renovar a sociedade de bem-estar. Não há dinheiro? Há sempre, desde que haja vontade política para o arranjar. Mantendo uma alternativa europeia concertada e não só nacional. Com uma democracia europeia que, de momento, está a ser, propositadamente, debilitada. Mas também aprofundar a Democracia, obrigatória em todos os Estados nacionais.

Contudo, o Socialismo Democrático, devemos reconhecê-lo, nos anos sombrios de Bush, embarcou no economicismo da “terceira via” defendido por Tony Blair.

Em Portugal, por exemplo, sempre tivemos, além do socialismo democrático, partidos da Esquerda radical, comunista, mais fechada hoje do que nos tempos de Cunhal (que tinha uma grande flexibilidade tática) e a Esquerda bloquista que ficou, eleitoralmente, entalada ente os partidos comunista e socialista. Mas afirmou-se ainda a Esquerda não partidária, cidadã e a Esquerda dos “indignados”, com laivos anarco-populistas.

A refundação socialista deve afirmar-se de novo atrativa, voltando aos seus valores de sempre mas sendo capaz de dialogar em permanência com o movimento sindical, no seu conjunto, com os verdes, tão dispersos e estranhos aos partidos, e adaptar-se às novas realidades do mundo de hoje, para poder sair da crise institucional, social, económica e política, carente de valores e de dirigentes capazes. Foi assim que os próprios militantes nacionais algumas vezes se enganaram de partido, faltando-lhes a sensibilidade social e a vontade política para diminuir as desigualdades, entre as pessoas e os Estados e, acima de tudo, conservando sociedades de bem-estar.

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A Esquerda, em tempo de eleições

Até há poucos meses a Esquerda europeia estava bloqueada e hesitante. Nos últimos meses, por exemplo, na Península Ibérica os dois Estados peninsulares – Espanha e Portugal -, governados por partidos socialistas, perderam as eleições legislativas, em favor de partidos e coligações de Direita. Passaram alguns meses. Mas a austeridade que ambos os Governos preconizam tem vindo a provocar um profundo descontentamento nas populações, dado terem percebido que os cortes obrigados pela troika, em Portugal, ou pela ideologia neoliberal do Governo espanhol, não só não resolvem os problemas gravíssimos com que se confrontam, como os agravam, cada dia.

Algumas oposições socialistas europeias entenderam-se, pela primeira vez, em Roma, onde um Presidente notabilíssimo, Giorgio Napolitano, conseguiu a proeza de substituir sem dificuldade Silvio Berlusconi, por um tecnocrata conhecedor dos problemas políticos, Mário Monti. Foi então, em Roma, que se reuniram alguns dirigentes socialistas e sociais-democratas, representando os partidos: alemão, francês, austríaco, belga, português, grego e salvo erro, espanhol, para debater as novas responsabilidades da família socialista europeia.

François Hollande, que ganhou as eleições presidenciais, por uma boa maioria, no domingo passado, esteve presente na reunião de Roma e afirmou, como se sabe, uma doutrina de mudança alternativa para a União Europeia.

Houve também, mais ou menos ao mesmo tempo, eleições na Grécia, na Sérvia, no Reino Unido e na Alemanha. As eleições deram resultados diferenciados, mas todos significativos. Na Alemanha, em Schleswig-Holstein, a chanceler Merkel e a CDU, apesar de terem ganho, tiveram o resultado pior, desde 1950. O que pode abrir portas a uma coligação à esquerda. Foi um resultado importante para a Esquerda.

Na Grécia ganhou, como se esperava, a Direita e também a Esquerda radical. O PASOK – que tanto lutou, com George Papandreou, para evitar o colapso anunciado – situou-se como o terceiro partido, atrás da extrema Esquerda e da Direita, principal responsável da crise, a seguir, obviamente, à chanceler Merkel…

Na Sérvia não tive modo de conhecer o resultado. Foi, salvo erro, um empate entre Esquerda e Direita. Mas na França, como escrevi acima, deu-se a vitória esperada do PSF, a caminho de se refundar. Foi um sinal que deve ser respeitado de que a União Europeia está a mudar, irreversivelmente. Tenhamos, pois, confiança, e mobilizemo-nos para os combates (pacíficos, creio) que aí vêm.

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O discurso da vitória

Foi notabilíssimo o discurso de vitória do vencedor François Hollande, líder do Partido Socialista francês, humanista, socialista e republicano dos sete costados, amigo próximo de François Miterrand. Disse, no fundo, como “homem normal”, que se intitula, o que o Povo de Esquerda queria ouvir: a defesa do Estado Social, a luta contra as desigualdades e o desemprego, o aprofundamento da democracia e do Estado de Direito, a defesa do ambiente, a luta contra o negocismo e os mercados usurários, a dignidade do trabalho e a defesa de uma Europa Política, Solidária e capaz de defender o euro, para nos fazer sair da crise global.

Eis a mudança esperada, que vai transformar a União Europeia e tornar um pouco melhor o mundo.


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