Opinião
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4 de março de 2012
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12:45

De indignados, “ocupantes” e rebeldes

Por
Sul 21
sul21@sul21.com.br

Por César Augusto Baldi

Tanto a Primavera Árabe, ano passado (que ainda não terminou, nem na Síria, nem Arábia Saudita ou Bahrein), quanto o movimento dos “Indignados” e do “Occupy Wall Street”, acabaram por causar surpresas para defensores de direitos humanos, sociólogos, antropólogos e ativistas políticos. Talvez as lições a serem tiradas sejam mais abrangentes que as que vêm sendo destacadas.

Primeiro: mesmo o Fórum Social Mundial não conseguiu estabelecer uma articulação organizada com estes movimentos e aproveitar o grau de lutas antissistêmicas neles presentes. Isto talvez implique reconhecer que também o FSM tenha se forjado dentro de um espírito mais eurocentrado do que admitiu. E tenha dado pouca atenção às contestações vindas de jovens e mulheres, que têm sido protagonistas desde os levantes do norte africano ( ou seja, foi muito mais masculino e ocidental que admitiu).

Segundo: as lutas políticas têm sido, ainda, centradas dentro de um paradigma que destaca o que se convencionou “sociedade civil organizada”, ou seja, partidos políticos, ONGs, sindicatos, etc. Estes movimentos estão a demonstrar, por um lado, que a “sociedade civil” é muito mais plural que o reconhecido pelas ciências sociais, e, por outro, que nem sempre a “organização” é a forma mais eficaz de protesto, num contexto de novas tecnologias e formas de comunicação (que não passam somente pelo Facebook, Twitter, como se tenta captar tais fenômenos).

Terceiro: as relações entre legalidade e ilegalidade, entre protesto usual e novas formas de combate podem e devem ser aproveitadas, simultaneamente, nas lutas contra novos modos de produção de desigualdade, opressão e injustiças. A relativa espontaneidade das ações e também as plataformas pouco usuais demonstram que também os “movimentos sociais tradicionais” não têm conseguido ser as formas de expressão destas demandas.

Quarto: os protestos salientam – o que sempre deveria ter sido óbvio- que a maior parte das pessoas não é militante de movimentos de qualquer tipo, mas que isto não as torna, somente por isto, “apolíticas”. Ou seja, demonstra a politicidade de formas de contestação que também estavam sendo invisibilizadas, e a necessidade de ampliar conceitos tradicionais de “cidadania”.

Quinto: a realização de protestos em praças, ruas, avenidas e centros de grande circulação demonstra, “metaforicamente”, que os denominados “espaços públicos” e “políticos” não são mais representativos das demandas e, pois, necessitam ser profundamente democratizados. Mais que isto: que o mercado também acabou por privatizar espaços públicos, não somente as bolsas de valores, mas fundamentalmente os partidos políticos e as formas de representação clássica. A crítica espontânea é, por um lado, a contestação do monopólio da representação e, por outro, a demonstração da mercantilização desenfreada da própria democracia. A transformação da Grécia – permanente símbolo do berço ocidental- em espécie de colônia informal da troika e uma filial dos interesses da Alemanha é o resultado mais cruel de um capitalismo que pode capturar de forma dramática a democracia, estabelecendo a desnecessidade de eleições. A queda dos governos grego e italiano, sem eleições parlamentares, e sua troca por representantes da Goldman Sachs é somente a comprovação da rapina praticada agora em terras europeias. Parafraseando Césaire, estão a aplicar na Europa aquilo que, durante décadas, foi o receituário para a América Latina.

Sexto: pode estar se gestando a necessidade de também o mercado democratizar-se ou ter formas de “controle social”, que vão além das propostas da Taxa Tobin. Os setores financeiros e as agências de ratting não suportaram, até o presente momento, qualquer sacrifício que foi imposto às populações, em decorrência de sucessivos ataques especulativos. A solução está entregue ao criador do problema, sem qualquer ônus. E, por sua vez, as empresas de “neo-extrativismo” estão a causar violações de direitos de indígenas e populações tradicionais, com o olhar condescendente dos governos ditos de “esquerda” latino-americanos.

Sétimo: em contextos de democracias de baixa intensidade (em que o capitalismo pode dispensar, “em estado de exceção”, a democracia), de intensificação de novas formas de colonialismo (em nome de “intervenções humanitárias”, como na Líbia, talvez na Síria e outros “laboratórios”) e de crescimento da xenofobia e do racismo (expulsão de estrangeiros, criação de entraves para entrada em países, alteração de parâmetros para não europeus), são as próprias lutas por direitos humanos que necessitam ser repensadas. Mais que lutar por “dignidade humana”, em termos que eram muito mais teóricos, talvez a ênfase tenha que ser “negativa”: desocultar, nas práticas sociais, as várias formas de “indignidade” humana que foram “naturalizadas” e “normalizadas.” Como diria Butler, entender porque apenas algumas vidas merecem ser choradas e outras não.

Como salienta Boaventura Santos, a teoria crítica, atualmente, foi perdendo a primazia de denominação de suas diferenças em relação às teorias tradicionais ou hegemônicas: foi perdendo os “substantivos” (socialismo, luta de classes, alienação, etc) e ficando com os “adjetivos” (sustentável, subalterno, insurgente, radical, participativa). Ou seja, entra no debate sem discutir os termos do debate. Necessita-se, urgentemente, de novas formas de imaginação sociológica, jurídica e política, rebeldes, inconformadas, indignadas.

César Augusto Baldi, mestre em Direito (ULBRA/RS), doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha), servidor do TRF-4ª Região desde 1989,é organizador do livro “Direitos humanos na sociedade cosmopolita” (Ed. Renovar, 2004).


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