Opinião
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18 de dezembro de 2011
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22:31

Christopher Hitchens (1949-2011): Ele morreu jovem demais, com ainda muito para dizer

Por
Sul 21
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Christopher Hitchens (1949-2011): Ele morreu jovem demais, com ainda muito para dizer
Christopher Hitchens (1949-2011): Ele morreu jovem demais, com ainda muito para dizer

Hitchens em Oxford nos anos 60

Por Nick Cohen

Por que muitos dos amantes da língua inglesa e da liberdade humana estão de luto por Christopher Hitchens? Seus livros abordando apenas um assunto nunca mostraram por completo seu talento – nem mesmo Deus não é grande, seu bestseller ateu. Com típica modéstia – e ele sempre era autocrítico, apesar de aparências ao contrário – ele pensava que apenas seus ensaios literários seriam lidos após sua morte. O domínio de obscurantistas jorrando teoria nos departamentos universitários de Inglês significava que ele tinha o campo do ensaio literário bastante para si, e seus textos sobre Larkin, Powell, Rushdie, Bellow e, acima de tudo, Orwell são de fato “imperecíveis”, para usar seu termo favorito.

Mas, se eu posso dar a notícia aos beletristas o mais gentilmente possível, qualquer aspirante a autor que diga a editores que poderá torná-los ricos com coletâneas de ensaios será conduzido até uma porta ao invés de até um contrato. Christopher Hitchens podia muito, mas não podia agitar as mentes de centenas de milhares de leitores apenas por meio de crítica literária.

Em conversação, ele foi o homem mais intelectualmente generoso que eu já encontrei. Mais escritores do que comumente se imagina são aflitos e suspeitosos. Eles mordem a língua e escondem os pensamentos, para o caso de autores rivais “roubarem suas ideias”. Hitchens era entusiasta demais da vida e do debate para perder tempo com tormentas e cautelas; engajado demais na batalha de ideias para se preocupar com outros tomando posse das suas.

Quando você tinha um argumento que precisava ser trabalhado ou um livro para entregar, ele te sentava numa cadeira, enchia seu copo até a borda e expunha ideias, referências, pessoas com quem você precisaria falar e escritores que você precisaria ler. Você tentava acompanhar o ritmo (e fracassava), na esperança de lembrar pelo menos um quarto do que ele havia dito após a inevitável ressaca e cansaço da manhã seguinte.

Conversações gloriosas sobrevivem apenas na memória do ouvinte, entretanto, e há a questão da birita, que precisa ser igualmente abordada. O obituário na BBC foi feito pelo correspondente de mídia, Nick Higham, um burocrata cata-informações que nunca escreveu uma sentença que tenha ficado na memória de alguém. Ele assegurou à nação que Hitchens era um “alcoólatra”. Hitchens com certeza dava suas viradas, mas ele e todo mundo que o conhecia entendia sua distinção entre um bebedor e um bêbado. Se ele fosse um verdadeiro alcoólatra, jamais teria escrito tanto, tão rápido e em um nível tão elevado. E nem teria sido tão querido, porque viciados são egoístas demais para que alguém os ame. Algo mais que a matéria da BBC inadvertidamente explicou foi por que o mundo se torna um lugar mais acolhedor para tiranos e censores sem Hitchens por perto. Hitchens rompeu com a esquerda, a BBC nos lembrou, a partir das atrocidades de 11 de Setembro e da segunda guerra do Iraque. Esquerdistas o acusaram de “traição”, continuou a notícia, e citou um que o descreveu como um “drink-soaked former Trotskyist popinjay”. A BBC não teve compostura para adicionar que o “esquerdista” em questão foi George Galloway, que saudou a “coragem” do fascista secular Saddam Hussein, fez apologias a regimes e movimentos sunitas e xiitas dominados pelo fascismo clerical e – antes que esqueçamos – liderou milhões em manifestações contra a guerra para derrubar o baathismo iraquiano, sem que as vozes respeitadas e supostamente moderadas da Inglaterra liberal levantassem uma só palavra de protesto contra sua presença.

Mais do que qualquer outro intelectual moderno, Hitchens se revoltou contra o sinistro absurdo de um tempo em que feministas, democratas e liberais em países pobres e em comunidades de imigrantes encontravam seus inimigos reacionários satisfeitos e desculpados mais pela esquerda do que pela direita.

Parafraseando Wilde, a quem Hitchens adorava, “numa ocasião desse tipo, é mais que um dever moral trair a esquerda. É um prazer.” Não vou ter com vocês nenhum papo furado sobre a esquerda deixando Hitchens ou Hitchens deixando a esquerda. Ele se retirou e bateu a porta com apenas uma olhada de lamentação para trás. Permaneceu um amigo e uma inspiração para muitos escritores esquerdistas, mas para com a “esquerda anti-imperialista” que abraçou islamistas negadores da vida, odiadores de mulheres e assassinos de gays, ele não tinha nada além de desprezo. Sua indulgência com o reacionarismo religioso a arruinou além de qualquer salvação.

Até pelo caráter final de sua despedida, dividir seu pensamento em pré- e pós-11 de Setembro é deixar de ver a consistência de sua escrita e a verdadeira fonte de seu enorme apelo. O marxismo de Hitchens era da variedade trotskista romântica. Ele não tinha interesse em economia – uma estranha omissão para um marxista, mas é isso aí. Ele era, isso sim, encantado pela bravura e presciência de Victor Serge, George Orwell e outros oposicionistas de esquerda do começo do século 20 que se opunham igualmente ao comunismo e ao capitalismo. Hoje em dia, ex-trotskistas estão entre as pessoas mais desonestas da política, mas seus predecessores dos anos 1960 ainda tiveram a integridade para ensinar-lhe uma lição inestimável. Ditaduras esquerdistas eram “stalinistas” em sua teologia, e um verdadeiro trotskista não deveria ter receios de combater-lhes tão ferozmente quanto combatia as ideias e regimes racistas e repressivos da direita.

Através de uma alquimia que efetivou sua mágica em poucos de seus camaradas, Hitchens transformou esse pensamento ordinário em uma aversão aos ditames de partidos, seja sob quais disfarces aparecessem. Ele não condenaria Evelyn Waugh, Anthony Powell e Philip Larkin apenas por serem conservadores mais do que elaboraria desculpas para Raymond Williams e John Berger apenas por serem socialistas. Ele não aprovava a opressão israelense de palestinos quando era “direitista” mais do que aprovava a opressão dos cubanos por Fidel Castro quando era “esquerdista”.

É impossível exagerar o quanto ele era adverso a pessoas que se prendiam a uma linha partidária e tentavam dizer a mim, você ou especialmente a ele como deveríamos pensar; como todo tipo de burocrata, arcebispo, rabino, aiatolá, comissário e inquisidor atiçava nele a urgência para uma luta.

Ele morreu jovem demais, quando ainda tinha muito para dizer. Aqueles que o liam sabiam que, quando tínhamos algo para dizer que poderia ser deplorado por nossos chefes, amigos, familiares e colegas, ao menos tínhamos o conforto de saber que Christopher Hitchens estava do nosso lado. Se cometêssemos um equívoco, ouviríamos uma voz lacônica da classe média superior inglesa, colocando nossos argumentos melhor que nós mesmos e nos instando a corrigir a postura e dizer o que tínhamos a dizer. Leia Hitchens, leia tudo em que conseguir colocar as mãos, e você ainda poderá ouvir essa voz.

Nick Cohen é um escritor e comentarista político britânico. É colunista do Observer e colaborador do Guardian e da revista Standpoint. Publicou em 2007 What’s Left: How the Left lost its way. Seus textos são reproduzidos no Amálgama com sua autorização e em concordância com os termos de serviço do Guardian News & Media Limited.

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