Opinião
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26 de novembro de 2011
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19:00

Para além de Montesquieu

Por
Sul 21
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Marcos Rolim *

Um dos principais problemas enfrentados pelos Tribunais de Contas no Brasil reside na incompreensão do seu status de instituição constitucional autônoma. Ainda hoje, a grande maioria dos políticos brasileiros, por exemplo, imagina que os Tribunais de Contas são “órgãos auxiliares do Poder Legislativo”, retirando daí a conclusão de que aqueles órgãos de controle externo existiriam na exata dimensão de uma determinada subalternidade funcional.

A confusão reside na leitura selvagem do artigo 71 da Constituição Federal onde se lê: “O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União”. Aqui, como observou o Ministro Carlos Ayres Britto (2005), trata-se de “auxílio” da mesma natureza daquele prestado pelo Ministério Público ao Poder Judiciário. Em outras palavras: a jurisdição só pode ser exercida com a participação do Ministério Público, sem que se cogite da superioridade do Judiciário sobre o Órgão Ministerial, ou vice-versa.

A conclusão se impõe naturalmente quando se percebe que as competências das Cortes de Contas não se subordinam a quaisquer dos Poderes tradicionais (basta lembrar, por exemplo, o disposto nos incisos III, VI e IX do art. 71 da CF) e que é atribuição dos Tribunais de Contas exercer o controle externo sobre a administração do próprio Poder Legislativo. Ora, um órgão que – no caso dos estados – deve julgar as contas do Presidente da Assembleia Legislativa, podendo mesmo, ao rejeitá-las, determinar a inelegibilidade do parlamentar, não há que ser concebido como órgão subordinado.

O que ocorre é que o Parlamento possui funções de controle sobre o Poder Executivo, devendo, a depender do tema objeto de sua sindicância, valer-se do trabalho dos Tribunais de Contas, notadamente no que diz respeito à legalidade dos gastos públicos e da regularidade das contas. Por isso, Carlos Ayres Britto assinalou que: “a atuação jurídica (do TCU) se dá a letere do Congresso, junto dele, mas não do lado de dentro” (Ob. Cit. p.65). O paralelo entre as Cortes de Contas e os Parlamentos cinge-se, portanto, à função do controle externo, não às competências constitucionais.

Da primeira dificuldade de compreensão sobre o que são, afinal, os Tribunais de Contas – dado que a desinteligência incide sobre a natureza mesma da instituição – derivam outras tão graves quanto. Este parece ser o caso, por exemplo, do espanto dos gestores quando as Cortes de Contas decidem exercer seu papel de controle da qualidade do gasto público. Aqui, trata-se, por óbvio, da competência definida constitucionalmente de zelar pela eficiência na gestão pública. O inciso IV do mencionado art. 71 da CF atribui aos Tribunais de Contas a tarefa de realizar “inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e
patrimonial”. Ora, as chamadas “auditorias operacionais” procuram medir os resultados de programas e de políticas públicas de tal forma que se proteja o interesse público diante dos riscos da má aplicação do dinheiro dos contribuintes. Trata-se de tarefa precípua dos Tribunais de Contas que constitui um desafio de extraordinária importância, particularmente na realidade político-administrativa brasileira marcada, como se sabe, pelo improviso, pela descontinuidade, pelas posturas meramente reativas e por uma tradição onde o monitoramento e a avaliação dos resultados das ações governamentais segue sendo exceção.

O debate sobre a natureza dos Tribunais de Contas implica, não casualmente, o futuro do controle externo no Brasil. Para que as possibilidades virtuosas dos Tribunais não sejam amesquinhadas, será preciso perceber que a realidade do Estado Democrático de Direito não cabe na formatação do “Espírito das Leis” de Montesquieu. Não apenas porque o mundo se alterou muito desde 1784, ano da publicação da obra célebre que sistematizou a teoria da separação dos poderes, mas porque o sistema de “freios e contrapesos“ (checks and balances) necessário às sociedades complexas deve ser, ele mesmo, complexo; refletindo, de alguma forma, o fenômeno contemporâneo identificado por autores como Bobbio (1983) e Giannini (1988) como “a diáspora dos centros de poder na sociedade civil”.

Os Tribunais de Contas – assim como o Ministério Público – são, pelas características de autonomia financeira, administrativa e funcional, e pelo conteúdo de suas próprias missões constitucionais, órgãos de Poder que não se confundem com quaisquer dos Poderes tradicionais (Executivo, Legislativo e Judiciário). O que nos coloca diante do desafio identificado por Moreira Neto (2005/06) para quem isto significa: (…) acrescentar às funções tradicionalmente constitucionalizadas – a normativa, a administrativa e a jurisdicional – novas outras funções constitucionais como, (…) a para-normativa, a para-administrativa, a para-jurisdicional, a fiscalizadora, a provocativa, a participativa, a defensiva (…)

Uma razão que, salvo melhor juízo, não demanda o rompimento com o olhar de Montesquieu e da tradição liberal que funda o moderno constitucionalismo, mas que exige a disposição de olhar por sobre os ombros destes gigantes para que se possa ver mais longe.

Referências:

BOBBIO, Norberto. Dizionario di Política, Turim, UTET, 1983, 2º ed. Verbete pluralismo, Apud Moreira (2005).

BRITTO, Carlos Ayres. O Regime Constitucional dos Tribunais de Contas In: O Novo Tribunal de Contas: órgão protetor dos Direitos Fundamentais”, Belo Horizonte, Editora Fórum, 2005, 3ª edição.

GIANNINI, Massimo Severo. Trattato di Diritto Amministrativo, Pádua, CEDAM, vol. 1, 1988, Apud Moreira (2005).

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. O Parlamento e a Sociedade como Destinatários do Trabalho dos Tribunais de Contas in: Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, nº 4, 2005/06. Disponível em: http://bit.ly/qkmsS4

* Marcos Rolim é jornalista e atua como consultor em segurança pública e direitos humanos


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