Opinião
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28 de julho de 2011
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13:15

Da Patologia à Cidadania

Por
Sul 21
sul21@sul21.com.br

Por Célio Golin *

Algumas questões para reflexão em torno da situação de gueis, lésbicas, travestis, bissexuais e transexuais na sociedade brasileira.

Quando surgiu o nuances, grupo pela livre expressão sexual, no ano de 1991, muitas pessoas questionavam a validade de se fazer uma luta política com o tema das sexualidades, e principalmente se tratando de gueis, lésbicas, travestis e transexuais. Nós, do nuances, sabíamos que o processo que excluía estes sujeitos do direito à cidadania tinha e tem razões históricas. A história é algo vivo e passível de mudança e depende do contexto e dos atores políticos envolvidos. O primeiro passo foi se articular politicamente e propor o debate público, rompendo com a clandestinidade que o tema sempre foi tratado.

Quando se fala de sexualidade é muito comum aparecerem argumentos do tipo: a sexualidade é privada e diz respeito a cada um. Este argumento, apesar de ser real, não explica nem justifica as várias situações onde os sujeitos são expostos, na suas intimidades, a situações de violência e de constrangimento moral. Estes fatos nos permitem entender que a sexualidade, apesar de ser de foro íntimo na nossa cultura, é uma questão moral que é usada para qualificar e desqualificar os sujeitos.

A sexualidade aparece nas mais variadas situações na vida das pessoas, como trabalho, escola, nos espaços públicos e nas relações de poder. Nesta medida, ela rompe com o privado e se torna mais uma das questões de interesse público. É por este motivo que existe o movimento organizado. Para dizer, denunciar e expor esta demanda relativa a pessoas que sempre estiveram de alguma forma excluídas do processo democrático em virtude de sua sexualidade.

Para compreendermos o local social e político aos quais os homossexuais (1) vivem, é necessário ter uma noção histórica dos processos que se constituíram nas relações de poder que a humanidade vem construindo. Não podemos deixar de salientar que a sexualidade humana sempre foi alvo de muita disputa, por se tratar de uma das manifestações mais importantes da vida das pessoas e, por consequência, da própria sociedade.

São vários os fatores e momentos históricos nos quais a sexualidade foi tratada pelas instituições de poder como: religião, o estado através de leis criminalizando os atos, a política preocupada em “proteger” a família dos desviantes, a ciência, psicologia, psiquiatria, tentando explicar o que deu errado no processo, e, mais tarde, pelas ciências sociais, antropologia, o direito com uma abordagem com cunho social, sem procurar causas.

Neste processo histórico, foram muitos os tipos de tratamentos dados aos homossexuais, dependendo da cultura, das relações de poder de cada época e principalmente da moral sobre a sexualidade. Todas estas instituições e poderes em maior ou menor grau colocaram de forma majoritária a sexualidade dos homossexuais de forma negativa e sempre associada a um tipo de desvio moral, sexual e de caráter. Estas opiniões permearam nossa cultura ocidental.

As razões para que isto tenha acontecido são muitas, de ordem política, moral, como no caso da religião judaico cristã, médica, pelas ciências, que sempre tentaram dar uma explicação pelo lado do desvio, sempre tratada como problema, haja vista que ainda hoje ouvimos debates e opiniões que tratam a questão como se fosse um problema subjetivo dos homossexuais.

Todo este histórico contribui decisivamente para alimentar o senso comum da população que percebe os homossexuais como cidadãos de segunda categoria, legitimando atitudes de exclusão.

A naturalização da sexualidade ligada à reprodução como fim, defendida pela religião católica e fundamentalistas como algo divino, não corresponde às práticas sexuais vividas pela maioria esmagadora das pessoas. Pergunto: O que tem de natural na sexualidade humana? A sexualidade é só para reprodução? Estas perguntas sugerem o debate nos campos da cultura versos natureza.

Uma mudança de paradigma nos mostra que é possível avançar.

Hoje há uma mudança no enfoque de como o debate vem se constituindo, mudou o foco, saindo das explicações e condenação para o direito à privacidade, direitos civis e à liberdade. A visibilidade rompe com a clandestinidade e a visão de pessoas como imorais, pervertidas ou desviadas. Reflexo disso são os jovens protagonizando sua história, pois já têm outros referenciais que não são aqueles negativos, pejorativos, mas como afirmação da cidadania e do direito à liberdade e ao prazer.

Mas temos claro que estamos num outro momento, que requer outras estratégias no debate e nas disputas políticas. Todo este reconhecimento social que temos conquistado provoca reações de setores conservadoras da sociedade, que vem com um discurso mais ideológico, tentando barrar nossas conquistas.

A grande visibilidade política e principalmente as paradas, que apesar das críticas de alguns de ser uma festa, para o nuances, que sempre teve muita clareza, têm um componente político fundamental neste processo. Em 1997, quando o nuances organizou a primeira Parada Livre sabia que as ruas eram lugar de luta. A decisão do STF, de reconhecimento das relações homossexuais é o reflexo das paradas que acontecem em todo o país. Junto a isto, as paradas também vêm provocando um debate que ultrapassa os locais fechados e tradicionais. A sexualidade exposta nas paradas vem mexendo com os setores conservadores que reagem com um discurso usado em décadas passadas, de atacar os homossexuais, colocando-os como vilões da decadência da moral familiar, associando as velhas questões como prostituição, abuso sexual e pedofilia. Este discurso foi proferido pelo advogado representante dos fundamentalistas no julgamento do STF. Fazem isto para disputar o senso comum da população.

Neste debate, aparecem como porta-vozes deste discurso políticos de partidos de direita, como o Partido Progressista, como exemplo o deputado federal Jair Bolsonaro, o arcebispo de Porto Alegre, Dom Dadeus Grings, e pastores fundamentalistas. Reflexo disto são as notícias de agressões que gays, lésbicas e travestis vêm sofrendo em pleno espaço público, como as agressões que aconteceram na Avenida Paulista e a travesti assassinada em Campina Grande, na Paraíba, que assistimos na mídia.

É importante ressaltar que, nestes eventos de violência, a opinião pública, a polícia e a própria mídia, na maioria das vezes, têm se colocado de forma solidária e dando um destaque importante para o tema, coisa que alguns anos atrás não se via.

Falando a partir de si

O movimento social como protagonista de uma nova agenda para o debate público. Gueis, lésbicas, intersexuais, travestis e transexuais vem propondo uma nova dinâmica no debate em torno da sexualidade e da luta por reconhecimento de direitos. As ONGs trazem com suas demandas políticas questões que rompem tabus que estavam cristalizados no senso comum da sociedade. Reflexo disto é o interesse que faz com que a academia cada vez mais desvende e perceba que existe uma complexidade muito grande nas expressões das sexualidades.

São vários os trabalhos e áreas envolvidas no assunto. O que tem contribuído para isto é a visibilidade dos comportamentos e formas de sociabilidades desta população, principalmente nos grandes centros urbanos.
Os espaços de sociabilidades formam um mosaico onde valores, crenças, ideologias, desejos, classe social, gênero, cor, fantasias sexuais e preconceitos nos mostram o quanto é complexo, rico e prazeroso o universo da sexualidade.
Hoje se vê que colocar tudo isto numa palavra como, por exemplo, gay, e a partir dela explicar as coisas nos parece um tanto simplificador das possibilidades reais no campo da sexualidade.

O espaço da marginalidade revela uma riqueza muito grande de possibilidades, que move todo um campo da sociedade que encontra neste ambiente “marginal” a possibilidade de realização de desejos fora dos padrões reconhecidos e legitimados socialmente. A prostituição, tanto de travestis quanto de garotos de programa, é um dos tabus mais polêmicos para nossa moral sexual, inclusive para muitos grupos de militância.

Na verdade, o campo da prostituição traz a tona outros atores sexuais “invisíveis” para o debate, que são os clientes que usufruem destes serviços. A condenação moral que sofrem travestis e garotos de programa, nunca vem acompanhada pelo outro lado da moeda, que são quem os procuram e porque os procuram.

Para o nuances, o debate em torno da sexualidade sempre foi prioritário, pois entendemos que o poder de contestação a partir do que é considerado marginal nos possibilita a desconstrução da moral heterossexista e cria novos paradigmas sobre o uso do corpo e da sexualidade, inclusive questionando a dita normalidade da heterossexualidade.

Uma das questões que o nuances sempre pautou no debate em torno da sexualidade, foi não ter como referência a heterossexualidade como reivindicação política de direitos. Sempre questionamos a normalidade da heterossexualidade, entendendo como mais uma possibilidade. A grande maioria dos grupos orienta-se politicamente a partir da heterossexualidade como modelo natural.

É evidente que o movimento não é uníssono em suas estratégias e entendimento da questão. Temos duas vertentes bem claras. Uma que faz a luta colocando o debate no campo da sexualidade e direitos humanos como prioritário, na qual o nuances se filia, e outra, que pauta o debate pela saúde, aids e pela equiparação dos direitos, com um forte apelo na vitimização como estratégia, e a partir da heterossexualidade como referência.

No campo do direito, também existem formas próprias de entender a questão. O termo homoafetivo, muito em voga hoje, defendido a partir da idéia de que para garantir direitos se usa o argumento da afetividade como elemento central nas justificativas, empobrecendo o debate. Outra linha de abordagem, na qual o nuances acredita e luta, é que a conquista de direitos devem se dar pelo princípio da dignidade humana, onde o debate não fica refém da heterossexualidade como parâmetro. Mais uma questão é como ficam as relações que não tem a afetividade como eixo central?

Fernando Pocahy (2009) fala num giro vertiginoso, nos idos dos anos 80, que reordena não somente a pauta da agenda do movimento homossexual mundial e o recém estruturado movimento brasileiro. A aids passa a funcionar como uma marca nova e central na ação do dispositivo da sexualidade reformatando as culturas sexuais mundiais, figurando como uma questão que dizia (diz) respeito às vidas marginais e como um castigo ou presunção do adoecer como signo de morte. Deparamos-nos com uma virada política no movimento de liberação homossexual, cuja palavra de ordem “sair do armário” passa a ecoar como sinal de exposição ao risco da violência e de um isolamento social ainda mais perverso, produzindo uma nova mobilização e exigindo cada vez mais a afirmação de uma identidade social, como estratégia política.

Vimos aqui em Porto Alegre, em 1995, quando da primeira intervenção dirigida à população “hsh”, o quão refratários eram os freqüentadores de bares e boates, bem como os proprietários, pois as campanhas e a disponibilização de preservativos evidenciava uma associação terrível: aids = homossexualidade. Figurando o gueto então, nos primeiros anos de intervenções com a população de homossexuais como um campo de disputa de significados sobre a sexualidade e a política.

Uma das questões mais significativas para o movimento social e para a vida dos homossexuais é a forma de como vem se travando o debate. Há poucos anos girava em torno de explicar as causas do porquê alguém é homossexual. Nos debates públicos, médicos, psicólogos, padres e advogados tentando explicar as causas no porquê alguém tem atração por uma pessoa do mesmo sexo.

Depois que o tema foi pautado pelos próprios homossexuais através de seus movimentos e da visibilidade que as paradas deram à questão, bem como decisões judiciais reconhecendo direitos e mais tarde políticas públicas por parte do estado reconhecendo a cidadania dos mesmos, nos transferimos para outro cenário.

Hoje é comum o debate nos mais variados espaços, sendo associado não mais à idéia de doença, desvio, mas a direitos ligados à dignidade humana e à democracia. Isto tem uma importância política do mais alto valor, talvez mais importante do que as próprias conquistas objetivas do dia a dia.

Para exemplificar esta mudança de paradigma podemos citar como exemplo desta nova situação o incidente que aconteceu com o jogador Michael Pinto dos Santos, da equipe do Vôlei Futuro, que foi xingado e humilhado por centenas de torcedores, assumindo publicamente sua condição sexual de ser guei. A princípio podemos achar que é só mais um caso, mas não é só isto.

O apoio que o jogador recebeu de seus companheiros de equipe e principalmente da direção do clube, que se posicionaram publicamente a favor do jogador através de nota, nos mostra que houve uma mudança de paradigma. Se isto acontecesse há dez quinze anos atrás é bem provável que o jogador ficaria sozinho e inclusive poderia sofrer represália por parte de seus colegas e direção. Num lugar como o esporte, que é permeado pelo machismo, isto ter acontecido, demonstra que estamos vivendo uma outra conjuntura.

Outro fato que vale a pena ressaltar é a eleição de gueis e lésbicas assumidas para direções do DCE, como no caso da Universidade Federal de Pelotas – UFPEL, e do Diretório Acadêmico do curso de medicina da UFCSPA. Mesmo que neste caso tenha havido uma reação homofóbica por parte de alguns colegas dos eleitos e da direção da universidade, o fato é que isto há anos atrás, seria muito mais complicado e talvez impensável.

Para deixar isto ainda mais significativo, a aprovação pelo Superior Tribunal Federal (STF) do reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo tem um peso histórico na luta do movimento social brasileiro. Esta conquista não está restrita aos homossexuais, mas aponta para pensarmos a democracia enquanto um valor fundamental no processo social. A posição do ministro Carlos Ayres Britto, que em sua defesa a favor da aprovação do projeto demonstra isto quando diz: “O sexo não pode ser usado como motivo para tornar as pessoas desiguais perante o estado”. Aprovado por unanimidade e com posições de outros ministros reconhecendo esta lacuna na democracia brasileira.

Além das questões práticas envolvidas nesta decisão, ela tem um significado político e simbólico que sinaliza outro momento histórico. Se junta a esta vitória o debate muito importante sobre a separação do Estado e da religião, fortalecendo o reconhecimento de que o estado é laico e que não pode ficar de refém de crenças religiosas, muito menos ser pautado por elas.

(1) Uso o termo homossexual na maioria das vezes para não deixar o texto pesado, pois sempre que preciso me referir, teria que usar lésbicas, gueis, bissexuais, travestis e transexuais ou LGBTT, que para mim empobrece o texto.

* Célio Golin é o coordenador do Nuances – grupo pela livre expressão sexual


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