Internacional
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24 de fevereiro de 2022
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17:45

‘O que nós estamos vendo é a inconformidade da Rússia com a existência da Ucrânia’

Por
Luís Gomes
luisgomes@sul21.com.br
Rússia anunciou o início de uma operação militar especial na região de Donbass, (Foto: Stringer/TASS)
Rússia anunciou o início de uma operação militar especial na região de Donbass, (Foto: Stringer/TASS)

O Exército russo deflagrou nesta quinta-feira (24) uma ofensiva militar sobre o território ucraniano. A ação transformou em guerra direta um conflito que já vinha ocorrendo em território ucraniano desde 2014, quando a Rússia anexou a região da Crimeia e passou a apoiar separatistas das regiões de Luhansk e Donetsk na guerra civil que segue em andamento. Para compreender o que se pode esperar do conflito nos próximos dias e os possíveis impactos da guerra para o Brasil, o Sul21 conversou com o cientista político e professor Maurício Santoro, do Departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Sul21 – O que podemos esperar do conflito nos próximos dias?

Maurício Santoro: A gente está vendo agora uma invasão em larga escala da Ucrânia, uma guerra que está acontecendo em vários flancos. Aparentemente, o objetivo é a ocupação de todo o território ucraniano. Isso é uma quebra das expectativas com relação ao que tinham sido os últimos meses, que já vinham sendo bastante tensos, mas até agora nós só tínhamos o conflito armado acontecendo naquelas duas províncias separatistas do leste da Ucrânia [Luhansk e Donetsk]. Era algo muito limitado em termos de Geografia. Agora, não. E a Ucrânia é o maior país integralmente na Europa. A Rússia é maior, mas está parte na Europa e parte na Ásia.

É muito grave o que está acontecendo. É a pior crise política e militar na Europa em 30 anos. A última vez que algo assim tinha acontecido foi nos anos 1990, com as guerras civis que desmantelaram a antiga Iugoslávia, mas talvez seja ainda pior, porque na Iugoslávia era um conflito interno e agora estamos vendo exércitos cruzando as fronteiras. O exército de uma grande potência nuclear como é a Rússia. Então, é outro nível em termos de problemas e de tensões.

Claro que, agora, todos os esforços por parte dos EUA e da União Europeia vão ser o de tentar impor um cessar-fogo e estabelecer algum tipo de negociação política. Mas, pelo menos nessas primeiras horas, o que a gente tem visto é um avanço bastante rápido do exército russo.

Professor Maurício Santoro | Foto: Arquivo Pessoal

Sul21 – O que parece é o que exército ucraniano não tem condições de repelir o avanço do exército russo de volta para as suas fronteiras. A Ucrânia pode receber ajuda militar internacional?

Maurício Santoro: A Ucrânia já vinha recebendo armamentos, mas o que ela não recebeu até agora são tropas de combate que pudessem, eventualmente, ajudar a defender o país. A gente ainda não tem como dizer se o exército ucraniano vai ser capaz sozinho de derrotar os russos, mas esse início de combate está sendo muito desfavorável para eles. A capital Kiev é muito difícil de defender do ponto de vista militar, está relativamente próxima da fronteira, cerca de 400 km. Os russos já estão avançando muito, já ocuparam Chernobyl, que está no meio do caminho. Se mantiverem esse ritmo, em alguns dias ocupam Kiev. Inclusive, há até uma sugestão dos americanos para que o governo deixe Kiev e vá para a fronteira próxima à Polônia, que seria uma região mais fácil de ser defendida.

Sul21 – O que a Rússia tem a ganhar com esse conflito? As sanções que já foram anunciadas e que continuarão a ser vão atingir em cheio a economia russa. Fala-se em retirar a Rússia do sistema Swift [sistema bancário global que conecta instituições financeiras], o que a tornaria uma espécie de pária da economia global.

Maurício Santoro: Exato, seria excluí-la do mercado bancário global. A Rússia vem sofrendo sanções desde 2014, desde a anexação da Crimeia [ ]. Mas, até agora, o impacto dessas sanções, embora tenha sido considerável, não foi suficiente para fazer o governo russo abandonar esses grandes objetivos militares e estratégicos. O que nós estamos vendo é não só o desejo russo de impedir qualquer nova expansão da Otan ou da União Europeia para os territórios da antiga União Soviética, mas também uma inconformidade do governo russo com a própria existência da Ucrânia como um estado independente. Essa tem sido a retórica do Putin desde 2008, pelo menos. Então, uma das dúvidas também é que tipo de objetivo ele está perseguindo do ponto de vista militar. Se ele quer anexar território, se ele quer incorporar, por exemplo, as repúblicas separatistas ou se tem um objetivo mais amplo de ocupar toda a Ucrânia.

 

Sul21 – E ele estaria ignorando os efeitos econômicos das sanções.

Maurício Santoro: Os efeitos econômicos vão ser imediatos. Nós já vimos, ontem, o barril de petróleo ultrapassar os US$ 100 pela primeira vez desde 2014. Vamos ter uma alta também nos preços dos fertilizantes, porque a Rússia é uma grande exportadora mundial. E isso vai trazer também um nível mais amplo de instabilidade econômica, com quedas de bolsas de valores, instabilidade no mercado cambial. A gente vai sentir o impacto disso no Brasil também. Quer dizer, essas altas nos fertilizantes vão impactar diretamente no preço da comida aqui no Brasil.

Sul21 – Isso que eu iria perguntar, que tipo de impacto podemos ter para o Brasil.

Maurício Santoro: Tem esse impacto econômico, que vai chegar em um momento em que a nossa situação econômica já estava bastante ruim, com as nossas dificuldades de país estagnado economicamente, inflação em alta, juros em alta, e agora uma grande guerra na Europa. No meio de uma pandemia, a gente ainda tem isso também. A gente vai ter também na Europa nos próximos dias uma crise de refugiados, vai ter uma população grande da Ucrânia deixando o país e buscando segurança nas nações vizinhas, principalmente na Polônia, que é membro da União Europeia, é membro da Otan, é um país muito mais rico economicamente do que a Ucrânia e que tem um governo de extrema-direita muito hostil a imigrantes e refugiados. Então, olha o cenário de crise que está se desenhando.

Sul21 – E como o senhor vê a posição inicial do Brasil diante do conflito?

Maurício Santoro: O Brasil está fazendo um grande esforço para não tomar partido na questão das disputas territoriais, se a Crimeia deveria ser russa ou ucraniana, se a Ucrânia deveria ou não fazer parte da Otan, e tem defendido a busca de uma solução pacífica para o conflito. Essa é a posição tradicional da diplomacia brasileira em qualquer disputa desse tipo, ela não está errada, mas diante do que a gente viu nas últimas horas, uma invasão generalizada da Ucrânia, acho que a posição brasileira não é mais suficiente. O Brasil deveria ter agora uma retórica um pouco mais encorpada, de criticar as ações russas. É claro que o Brasil nunca vai ser um crítico tão estridente da Rússia quanto são os EUA e a União Europeia. O Brasil tem outro tipo de ligação política e econômica com a Rússia, mas é importante também frisar esse princípio de respeito das soberanias, das fronteiras, do direito internacional, porque são elementos fundamentais de uma ordem global que seja favorável ao Brasil. Quer dizer, uma ordem global em que as grandes potências invadam os seus vizinhos seria extremamente instável, turbulenta e perigosa para o Brasil.

Sul21 – Recentemente, nós temos vistos conflitos e intervenções militares que se arrastam por muitos anos, seja no Iraque, na Líbia, no Iêmen. Pode-se imaginar que esse conflito na Ucrânia poderá se prolongar por muitos anos também?

Maurício Santoro: Olha, eu tenho visto esse conflito atual como sendo a nova rodada de uma longa história de conflitos que acontecem no território da Ucrânia. Esse país que hoje forma a Ucrânia, que conquistou a sua independência apenas em 1991, ele foi ao longo da história campo de batalha entre impérios rivais. Principalmente a Rússia, pelo leste, e pelo oeste a Polônia, a Hungria, etc. O que a gente está vendo agora é uma versão renovada desses grande conflito geopolítico, de um lado a Rússia e, de outro, esse sistema de alianças ocidentes, que envolve tanto a União Europeia quanto a Otan, que estão no coração dessas disputas.


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