Geral
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23 de maio de 2022
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20:04

O poste, a ambulância, e a vida real do prefeito Melo

Por
Luciano Velleda
lucianovelleda@sul21.com.br
Maria Lúcia Vecchia mora na Alameda 12 do bairro Mario Quintana, onde ambulância não entra para socorrer os moradores. Foto: Luciano Velleda/Sul21
Maria Lúcia Vecchia mora na Alameda 12 do bairro Mario Quintana, onde ambulância não entra para socorrer os moradores. Foto: Luciano Velleda/Sul21

Tão logo o séquito que acompanha o prefeito Sebastião Melo (MDB) ao bairro Mário Quintana faz sua primeira parada na zona norte de Porto Alegre, o vereador Cassiá Carpes (PP) se dirige a um pequeno grupo de pessoas que, da calçada, observa o mundaréu de gente que repentinamente muda a rotina do local. O vereador se apresenta e vai logo dizendo que, se houver algum líder comunitário com necessidades que envolvam o esporte, é só lhe procurar na Câmara.

– Tem que praticar esporte, é fundamental – comenta o ex-jogador e técnico de futebol.

Há um bolo de gente em torno do prefeito, cujo chapéu de palha se destaca no aglomerado de secretários, diretores, assessores, seguranças e jornalistas. Da calçada, uma senhora vestindo casaco acolchoado verde-musgo, saia e botas pretas para se aquecer na fria manhã de sexta-feira (20), tão logo percebe a presença de Melo se apressa em chegar mais próximo.

– Precisa mostrar isso aqui pra ele –, exclama. O “isso aqui” trata-se de um buraco bem embaixo de um poste de luz que, segundo ela, corre risco de cair e levar junto um emaranhado de fios de energia.

Gilse Maria Soares aperta o passo, contorna o grupo que cerca o prefeito e consegue parar diante de Melo. Ansiosa, ela conta sobre o problema, quer que ele veja o buraco e o poste, mas o prefeito logo passa a questão para o secretário de Serviços Urbanos, Marcos Felipi Garcia, não sem antes dar dois tapinhas nas costas da senhora.

Incumbido da tarefa, o secretário se deixa ser levado por Gilse para inspecionar o buraco.

– O poste tá frouxinho frouxinho, vai cair pra frente – ela observa.

– Vamos agir imediatamente – responde Marcos Felipi, tomando nota do nome da rua e procurando um número de residência para ter como referência.

Cerca de 40 minutos antes, ainda em frente ao Paço Municipal, Melo pedira a palavra para comentar a atividade do dia. Levar sua equipe de governo, acompanhado de empresários – e da imprensa –, para conhecer alguns dos problemas que afetam a comunidade do bairro Mário Quintana. “Onde a vida real acontece”, como definiu o prefeito.

Após tirar fotos e anotar o telefone de Gilse, o secretário de Serviços Urbanos vê que ficou para trás na comitiva e sai correndo pelas ruas de chão batido para reencontrar o grupo. Liderada por Melo, a turma já está quase na beira do Arroio Feijó, o primeiro ponto determinado no roteiro para a inspeção oficial. Um pouco para trás no grupo, o secretário de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade, Germano Bremm, comenta em voz baixa:

– A corneta do arroio vai ser pra mim.

Na margem do Arroio Feijó, Melo discursa sobre or problemas do bairro e ressalta a parceria com os empresários. Foto: Mateus Raugust/PMPA

Mas não foi. Parado na beira do arroio, Melo discursa sobre o problema do acúmulo de lixo no curso d’água, diz ser preciso cercar a área para que novas casas não sejam construídas no entorno, fala sobre a necessidade da regularização do território e lembra que a situação piorou desde que o bairro passou a abrigar centenas de famílias oriundas da Vila Nazaré, removidas para ampliação da pista do aeroporto.

– Viu, meus empresários? Essa é a vida real! – anuncia o prefeito.

De acordo com a gestão municipal, representantes da ATP, Fiergs, Sindha, Sindiatacadistas, Sindilojas, Sinduscon, Zaffari, ZCafé, Cúria Metropolitana, PUC, UFRGS e Unisinos estavam na comitiva da 1ª Caravana Mais Comunidade.

Ao lado do prefeito, Paulo Sérgio de Moraes Monteiro, o Paulinho, presidente da Associação Comunitária Amigos do Recanto do Sabiá, comenta que as principais demandas da comunidade são o saneamento básico, uma área de lazer e um galpão de reciclagem.

– Conta da praça pra eles, rapaz – encoraja Melo, incentivando o líder comunitário a aproveitar o momento da presença de empresários no tour.

Como quem pergunta já prevendo a resposta, o prefeito questiona como está a situação da água no bairro. Jogada ensaiada, Melo levanta a bola, e Paulinho corta.

– Graças a Deus, e graças ao prefeito, agora a comunidade tem água – enaltece o líder comunitário. Paulinho então lembra que os moradores também reivindicam uma linha de ônibus que os leve ao centro da cidade.

– Cadê ATP? Cadê Secretaria dos Transportes? – berra Melo, esticando o pescoço para ver se encontra as pessoas devidas.

O prefeito retoma a palavra. A parada no Arroio Feijó rende. Melo diz que os empresários ajudam muito. Cita, como exemplo, as contrapartidas dos empreendimentos, e faz uma crítica irônica de que os empresários só querem efetuar contrapartidas ao redor dos seus negócios. Pede que não seja assim, que seja “um pouco lá e um pouco cá”, sem comentar, todavia, que é responsabilidade da Prefeitura determinar quais são e onde são as contrapartidas realizadas pela iniciativa privada em troca da aprovação de determinados projetos.

Do meio do grupo, surge Claudio Zaffari, diretor da Cia Zaffari. Daquele momento em diante, o empresário seria figura de destaque no roteiro planejado pelo governo municipal. O diretor faz alguns comentários, afirma que pode sim realizar algo na região, e então é efusivamente aplaudido, com Melo puxando a salva de palmas.

Além de Cássia Carpes, a comitiva conta com a presença dos vereadores Alexandre Bobadra (PL), Giovane Byl (PTB) e Alvoni Medina (Republicanos) – cujos assessores vestem jaqueta branca escrita “Equipe Medina”.

Melo organiza a agenda e diz que cada vereador terá direito a fala num determinado ponto do roteiro. Ali na margem do Arroio Feijó foi a vez de Byl. O vereador define a presença dos empresários no Recanto do Sabiá como “um presente pro povo”. Byl cita novamente como as famílias provenientes da Vila Nazaré aumentaram a demanda no posto de saúde local, na escola e no transporte público.

A comitiva da Prefeitura durante a 1ª Caravana Mais Comunidade. Foto: Luciano Velleda/Sul21

Terminadas as considerações à margem do arroio, o grupo segue para a próxima parada. Uma senhora aborda Melo e reforça o pedido por uma linha de ônibus. Como resposta, escuta o prefeito dizer que a situação do transporte público está difícil, com muitos ônibus vazios, crise do setor.

Mais adiante, por detrás de um muro, outra senhora chama o prefeito e lhe conta sobre a necessidade da prefeitura construir uma vala nos fundos do seu terreno. Adriana Pohlman explica que, quando chove, a água escorre e invade o quintal, impedindo a construção de sua horta.

– Cadê o Dmae? – berra Melo. Vamos dar uma atenção. Cadê o Paulinho? Vou pedir para dar uma olhada na vala, falar com o Dmae, vamos limpar.

– É coisa simples que a gente precisa – comenta a moradora.

A comitiva segue. Em outro ponto do bairro, Melo sobe num banco de madeira e aponta ao redor, uma área degradada, suja, onde ele vislumbra que possa ser construída a praça demandada pela comunidade. Chama Claudio Zaffari e lhe mostra o terreno. O empresário olha, faz alguns comentários, acena positivamente para a ideia.

– O projeto é do Zaffari, com o auxílio do poder público – já anuncia o prefeito.

– Viva o Zaffari! – exclama o vereador Bobadra.

Alguns minutos depois, termina a primeira parte da visita. Melo se despede do líder comunitário, que por sua vez agradece ao prefeito, ao vereador Byl e aos empresários presentes.

– Paulinho, a dor de vocês é a nossa dor – diz o prefeito. E o vereador Bobadra puxa uma salva de palmas.

O Mário Quintana foi o primeiro bairro escolhido por Melo para mostrar a “vida real” da cidade para sua equipe. Foto: Luciano Velleda/Sul21

Os integrantes do périplo retornam aos seus veículos e o grupo segue para a segunda parada do roteiro. Não demora muito e todos já estão novamente na rua, agora em outro ponto do bairro Mário Quintana.

No caminho da vistoria seguinte, uma assessora passa o telefone celular para o prefeito. Ele pega e, prontamente, grava um áudio para o que parece ser um grupo de vereadores. Comenta sobre um projeto sem especificar qual, e sugere a realização de reunião na segunda-feira seguinte.

– Tamo junto, pessoal, bom dia! – finaliza o áudio.

O grupo entra num beco muito apertado, o que obriga a formação de fila e atrasa o passo. O cenário é desolador, de pobreza extrema. Bobadra chama Melo, brinca que não gosta de fazer o papel de puxa-saco, e anuncia que trouxe “um pãozinho para o senhor”, estendendo uma sacola plástica branca cheia de cassetinhos. O vereador veste abrigo preto com lista horizontal branca na parte superior, figurino que parece pronto para ir na academia de ginástica.

Na Alameda Doze do bairro Mário Quintana, a comitiva se engalfinha num beco ainda mais estreito até chegar ao fundo de um terreno onde há mais um córrego repleto de lixo. Na companhia de outro líder comunitário, Melo discorre sobre a difícil situação do local, ressalta a importância do sentimento de pertencimento dos moradores para não sujarem o terreno, lamenta que a Prefeitura não tem dinheiro para tudo e precisa do apoio dos empresários.

– Conte conosco, sem demagogia, sou um prefeito que conhece essa cidade como a palma da mão – diz Melo.

A comitiva retorna pelo beco e, na esquina, surge Maria Lúcia Vecchia, há 26 anos moradora do bairro. Ela reclama da falta de asfalto, que inviabiliza a entrada de ambulância para socorrer uma vizinhança composta de muitas pessoas idosas. Quando alguém fica doente, precisa ser carregado no colo até a rua mais próxima onde se chega de carro.

O grupo do prefeito, entretanto, tem pressa em rumar para a próxima parada, e o pedido da senhora logo fica para trás.

– Aqui tem pessoas de bem, não tem só do mal. É gente do bem, que trabalha. A gente paga água, não paga luz porque não tem – explica Maria Lucia, apontando para os fios de energia, tudo “gato” de luz que volta e meia dão problema, ocasionando a perda de geladeira, micro-ondas e outros objetos elétricos.

Ela conta que a vizinhança já perdeu a força de reivindicar. Antigamente, diz, havia esperança e a comunidade se organizava para demandar o poder público. Com o tempo, porém, conforme as coisas não aconteciam, o desânimo foi tomando conta.

– Eles esqueceram da gente aqui. Arrumam ali em cima, mas aqui esqueceram da gente. No beco não entra caminhão pra mudança, não entra ambulância, é isso que me invoco. Depois chega na eleição e vem todo mundo pro beco.

Maria Lúcia Vecchia, aposentada, teve infarto há quatro anos. Foi socorrida pelo filho. E enquanto a moradora segue contando como são as coisas “onde a vida real acontece”, como definiu o prefeito no começo da manhã, a comitiva oficial segue seu rumo ao longe.

Caminho em direção ao Beco do Cavalo, próximo a rua Alameda Doze, no bairro Mário Quintana. Foto: Luciano Velleda/Sul21

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