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18 de maio de 2022
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09:41

Do outro lado do muro do São Pedro, residenciais recebem os últimos internos do hospital

Por
Luís Gomes
luisgomes@sul21.com.br
Hospital Psiquiátrico São Pedro | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Hospital Psiquiátrico São Pedro | Foto: Guilherme Santos/Sul21

O 18 de maio marca o Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Em Porto Alegre, o grande quarteirão da Av. Bento Gonçalves ocupado pelo Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP) ainda guarda na memória o período em que pessoas com problemas psiquiátricos, ou mesmo simples desajustados, eram internados em manicômios sem prazo para sair. Se depender da atual meta da Secretaria Estadual de Saúde (SES), contudo, este será o último 18 de maio em que o São Pedro terá “moradores”. O objetivo é que até o final do ano seja finalizado o longo processo de desinstitucionalização iniciado há décadas. De um pico de 5 mil pessoas que já estiveram internadas simultaneamente ali, hoje permanecem 16.

A psicóloga e professora da UFRGS Simone Mainieiri Paulon, uma das principais militantes da reforma Psiquiátrica no Rio Grande do Sul, destaca que o processo de desinstitucionalização começou ainda na década de 1980, no governo de Pedro Simon (MDB), sob coordenação de Sandra Fagundes, que depois viria a ser secretária estadual de Saúde no governo Tarso Genro (PT). Um processo, explica, que foi embasado ao longo dos anos pela lei estadual 9.716, de 7 de agosto de 1992, que determina a substituição progressiva dos leitos nos hospitais psiquiátricos por rede de atenção integral em saúde mental.

“A desinstitucionalização do São Pedro é muito bem-vinda, é necessária, é extemporânea, porque ela está operacionalizando um princípio e uma prática garantida numa lei que foi aprovada lá em 1992 no Rio Grande do Sul”, diz Simone Paulon.

 

Serviço Residencial Terapêutico Nossa Casa foi inaugurado em novembro de 2021 para acolher internos do São Pedro | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Ao longo das décadas, o objetivo da desinstitucionalização era promover, à medida do possível, o retorno dos internos para o cuidado familiar ou de redes municipais de Saúde. Contudo, muitos deles já não tinham mais vínculos familiares e, em 2002, foi inaugurado em Porto Alegre o primeiro serviço residencial terapêutico (SRT) para abrigar pacientes do São Pedro em processo de desinstitucionalização, o Morada São Pedro, localizado ao lado do hospital, na atual Vila São Pedro.

Em novembro de 2021 e março deste ano, a Secretaria Estadual de Saúde (SES) concluiu o processo de adaptação de 19 moradores em dois novos residenciais, o Nossa Casa e o Aconchego, respectivamente. Eles são casas do Morada São Pedro, em que pacientes residiam individualmente ou em duplas, convertidas em moradias coletivas voltadas para pacientes com menor autonomia e mais dependentes de profissionais de saúde, o perfil das pessoas que permaneceram no São Pedro nos últimos anos.

Além dos residenciais localizados na Vila São Pedro, existem quatro casas alugadas em Porto Alegre e quatro casas do Estado em Viamão. Atualmente, há 102 pessoas morando em SRTs do Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP).

 

Secretaria de Saúde inaugurou dois residenciais desde 2019 e pretende inaugurar mais dois neste ano | Foto: Joana Berwanger/Sul21

 

Tânia Beatriz Fioravante, coordenadora técnica da Divisão de Serviços Residenciais Terapêuticos do HPSP, explica que, com o passar do tempo e o envelhecimento dos moradores do hospital, o processo de desinstitucionalização foi desacelerando. Em 2021, 25 moradores deixaram as dependências do HPSP. Até o início de maio deste ano, 10 moradores também passaram pelo processo.

Um dos moradores do Aconchego é Flávio, mais conhecido como “mamãe”, apelido dado pelos profissionais de saúde em razão de ele se referir a todos apenas pelas alcunhas “mamãe” e “papai”. “O ciúme bate se a gente não fica perto dele, é como um filho”, conta a técnica de Enfermagem Vera Santos, que acompanha Flávio há 25 anos, quando ele estava internado na antiga Unidade Don Bosco, em Viamão, que abrigava transferidos da antiga Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (Febem).

Vera avalia que o trabalho na Aconchego, em que moram cinco homens e cinco mulheres, permitiu um atendimento mais dedicado e uma atenção maior dos profissionais às individualidades de cada paciente.

“A princípio, neste lugar menor, eles têm mais confiança na gente. Eles têm todas as rotinas de uma casa, como se fosse a casa da gente. Alimentação de quatro a cinco vezes ao dia, consultas na rede básica de saúde”, diz. “Eles estão bem mais tranquilos. Tem pacientes que quase não falavam e estão bem mais falantes. Tem um que a todo tempo pede café, ‘quero mais café’, como se não comesse a vida inteira”, diz.

 

Profissionais do SRT Aconchego prestam apoio em tempo integral aos moradores | Foto: Joana Berwanger/Sul21

O Aconchego, junto com o Nossa Casa, é um SRT do Tipo II, destinado a pessoas com maior grau de dependência, que necessitam de cuidados intensivos específicos, do ponto de vista da saúde em geral, e demandam apoio permanente e diário de profissionais especializados. No caso dos dois SRTs inaugurados na Vila São Pedro, este apoio é feito por equipes de dois técnicos ou auxiliares de enfermagem por turno (um durante a noite) e um enfermeiro que supervisiona o trabalho vinculados à Secretaria Estadual de Saúde. As casas também contam com equipe de nutrição e limpeza terceirizadas.

Além do trabalho diário, também acompanha os moradores de todos os SRTs envolvidos na desinstitucionalização do São Pedro uma equipe multidisciplinar que inclui cuidadores, assistente social, terapeutas ocupacionais, fisioterapeuta, pedagoga, educadores físicos, nutricionista e administrativo.

Vera conta que, apesar das limitações, alguns dos pacientes se reúnem durante a tarde para dançar em torno de uma caixa de som levada pelos trabalhadores. “A Ilda, por exemplo, passa o dia rindo e dançando, e a gente dança também. Para eles, foi uma mudança boa”, diz.

Esses residenciais do Tipo II eram moradias para pacientes do Morada São Pedro que estavam vazias e foram adaptadas para se tornarem residenciais coletivos. Eram casas que anteriormente tinham quartos individuais, um banheiro e uma cozinha. Após serem unificadas em um único residencial, passaram a contar com quartos para duas ou três pessoas, cozinha, um banheiro adaptado, uma sala para armazenamento de materiais e uma ampla sala de convivência, com sofás, televisão e uma mesa com capacidade para 10 pessoas.

 

Teca e Pedro Jairo moram sozinhos em um residencial | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Os dois novos residenciais ficam na primeira das três ruas da Vila São Pedro. Na última rua, ficam residências que estavam desocupadas e estão atualmente em obras, sendo convertidas para receber os moradores que ainda vivem no São Pedro. Na rua do meio, estão as casas do Tipo I, destinadas a pessoas com maior autonomia. Nesta modalidade, os pacientes moram em casas individuais ou em dupla e recebem suporte para a realização de atividades de trabalho, lazer e educação, quando possível.

Tânia explica que os pacientes dos residenciais do Tipo I não possuem independência absoluta, mas o que se chama de “autonomia mediada”, em que os profissionais de saúde ajudam os moradores a fazerem suas escolhas de maneira independente. Com a morte dos pacientes, as casas do Morada foram sendo desocupadas ao longo dos anos, mas o residencial ainda conta com 19 moradores, 8 mulheres e 11 homens.

Tereza Viturina Saturnivo, a Teca, 64 anos, é uma das residentes do Morada São Pedro. De origem indígena e não alfabetizada, ela foi encontrada, segundo a equipe do HPSP, perambulando pelas ruas do município de Sobradinho. A Funai tentou buscar informações sobre suas origens, mas como não tinha familiares identificados e nem mesmo possuía identificação própria, acabou sendo transferida para o São Pedro em 1978. Foi Teca quem escolheu a combinação pouco usual de cores da fachada da casa onde mora, um vermelho vibrante com janelas azuis. Segundo Tânia, Teca realiza atividades domésticas simples e, antes da pandemia, chegava até a ir ao supermercado com acompanhamento para fazer compras, ainda que não tenha noção de valores. Ela não recebe acompanhamento em tempo integral, mas profissionais de saúde supervisionam sua rotina.

Teca divide uma casa com o amigo Pedro Jairo, 58 anos, também de origem indígena e natural de Sobradinho. A história contada no São Pedro é que, aos 4 anos, ele já consumia bebida alcóolica com as quatro irmãs mais velhas e com consentimento da mãe. Aos 12 anos, morando com o pai, em Porto Alegre, sofreu um traumatismo craniano, que também resultou em perda de visão. Aos 15 anos, foi recolhido na antiga Febem em razão do uso de drogas (cola e maconha). Saiu aos 18 anos e retornou para Sobradinho, mas não foi acolhido pelos familiares e passou a viver em situação de rua. Em 1983, aos 19 anos, foi recolhido pela prefeitura da cidade e levado ao São Pedro. No final dos anos 1980 e ao longo dos anos 1990, passou pelo Instituto Psiquiátrico Forense (IPF) e pelo Hospital Colônia de Itapuã (HCI), mas sempre acabava retornando ao São Pedro.

Em 2003, chegou a ser encaminhado a um residencial terapêutico no âmbito do processo de desinstitucionalização, mas não se adaptou, retornando no mesmo ano ao São Pedro. Em 2013, voltou à Morada São Pedro, onde está desde então. Tânia conta que Teca e Pedro Jairo tem um relacionamento desde 2001. Embora já tenham namorado, hoje se consideram amigos.

 

Teca e Pedro Jairo cuidam de um gato | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Antes da pandemia, os moradores das residências de Tipo I chegavam a sair do local para realizar atividades como ir ao teatro, cinema e até mesmo viagens para o litoral e o interior do Estado. Em razão da pandemia, as saídas foram suspensas, mas Tânia explica que a ideia é que elas sejam retomadas dentro possível, com a ressalva de que os moradores acabaram envelhecendo nos últimos anos e perdendo o hábito.

Os moradores que permanecem no São Pedro também já não têm mais vínculos familiares identificáveis. Ao longo de décadas de desinstitucionalização, todos aqueles que tinham condições de retornarem para suas famílias ou para seus municípios já o fizeram. Os que permanecem são idosos, cuja única alternativa, segundo a SES, são os serviços residenciais terapêuticos.

“O processo de desinstitucionalização acontece há 20 anos. A gente trabalhou, por exemplo, a tentativa de voltar pra vínculos familiares. Essas pessoas que hoje estão nesses dois espaços não há, pelo menos em nossos planos terapêuticos até o momento, nenhum que tenha este resguardo familiar preservado. São pessoas mais idosas, então seus familiares foram também seguindo. Alguns já não tinham vínculo com a família. Mas muitos, sim, voltaram no decorrer desses vinte anos, alguns foram para suas casas. Neste momento, o cenário tem se mostrado para os residenciais terapêuticos”, diz Ana Costa, secretária adjunta de Saúde do Estado.

Ana Costa expressa confiança de que a desinstitucionalização do São Pedro será concluída até o final do ano, mas ressalta que se trata de uma meta e que estas nem sempre são possíveis de serem cumpridas, ainda mais num processo que depende da condição de cada paciente. “Pode ser que aconteça até setembro, pode ser que aconteça até dezembro, a meta está colocada até o final do ano”, diz.

Para os próximos anos, a SES também pretende concluir a desinstitucionalização do Hospital Colônia de Itapuã, um processo que, segundo Ana Costa, está em fase de elaboração do plano terapêutico singular dos pacientes lá internados. “As pessoas estão inadequadamente morando num hospital porque a história segregou pessoas de saúde mental que tinham sofrimento psíquico e essas pessoas perderam vínculo familiares. Na verdade, o hospital não é lugar de morar”, diz.

A secretária adjunta ressalta que o processo de desinstitucionalização ocorre de forma individualizada, sendo necessária a elaboração de um plano terapêutico para cada morador do São Pedro. Ela destaca também que não se trata de um processo rápido, mas de médio ou até longo prazo, pois é necessária a adaptação de cada paciente ao seu residencial. Isso ocorre por meio de uma série de visitas até o momento em que o paciente esteja adaptado e se sinta confortável para permanecer.

“Se eu moro num local há quarenta anos, é preciso que alguém entenda o que eu preciso, o que eu quero pra poder ter essa liberdade. Então, a gente vai para o serviço residencial terapêutico e precisa, por exemplo, de um cuidado de saúde muito mais presente. Um vai ter que ter alguém pra cozinhar somente, um cuidador, mas outro vai precisar ter profissional, por exemplo, pra acompanhar, vai ter que linkar a rede para fisioterapia, para os cuidados de atenção. Então, é um trabalho feito olhando para o indivíduo, mas onde a rede inteira constrói a possibilidade dessa pessoa se inserir na sociedade”, diz.

 

Antigo residencial do Tipo I está em obras para receber pacientes que permanecem  no São Pedro | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Ana Costa ressalta que o processo de inclusão pelo qual passam os pacientes psiquiátricos é análogo ao que também passam as pessoas com deficiência física. “A inclusão nada mais é do que você respeitar talentos e limitações de cada um, sejam eles quais forem, físicas, mentais, e elas estarem inseridas no seu papel social. Isso pode passar por precisar de atendimento no CAPS, eventualmente passar por uma internação, mas não pode ser a moradia dela. Nós estamos falando que o ideal é que a pessoa consiga conviver socialmente de acordo com as suas necessidades e os seus talentos e potencialidades. Historicamente, eu não posso deixar de dizer, muitas pessoas que tiveram oportunidade de conhecer uma vida que não a institucionalizada melhoraram muito. Nós temos que pessoas que hoje fazem algum trabalho, fazem alguma coisa artística, porque conseguiram encontrar nas oportunidades possibilidades de melhora”, diz.

Apesar de todos os profissionais de saúde ouvidos pela reportagem durante a visita ao local concordarem que os pacientes estão em melhores condições de atendimento, alguns técnicos apontam que há problemas no serviço atualmente. Destacam, por exemplo, que até a publicação desta reportagem havia falta de profissionais de limpeza e alimentação há pelo menos dez dias em razão da falta de pagamento pela empresa contratada pelo governo para a prestação dos serviços terceirizados. Além disso, apontam que as equipes das SRTs atuam em números limitados, não havendo substitutos para o preenchimento de eventuais faltas na equipe, e que o som alto de festas que acontecem na comunidade dificultam o trabalho no turno da noite.

Hoje, a grande maioria dos casos psiquiátricos que exigem atenção hospitalar são tratados em leitos de hospital geral. O São Pedro segue sendo uma referência estadual para o tratamento de casos graves e para o atendimento de crianças e adolescentes.

A psicóloga a psicanalista Maria Angela Bulhões começou a trabalhar no HPSP em 2000 e ajudou a construir o projeto do residencial Morada São Pedro, atuando na coordenação do processo de construção das casas, de definição de quantos pacientes seriam encaminhados para elas e quais seriam as condições necessárias para a desinsitucionalização. Ela conta que a proposta inicial do residencial era dar condições para pacientes que poderiam se beneficiar de uma vida fora do hospital, pois ainda tinham condições de fazer escolhas e gozar de autonomia e liberdade.

Maria Angela destaca que, nessa época, mais de 900 pacientes ainda estavam morando no São Pedro, alguns deles ainda jovens. Isso ocorre porque parte dos internos do São Pedro moravam na unidade Dom Bosco, que abrigava pessoas que haviam sido internadas na Febem e que, em algum momento, passaram para a tutela do hospital. “Eram crianças e adolescentes que estavam institucionalizados, porque tinham problemas neurológicos, problemas psiquiátricos, tinham sido abandonadas e estavam numa casa de acolhimento da Febem, o que vira uma questão de saúde mental num canetaço”, diz. No entanto, hoje permanece no São Pedro apenas quem já era adulto na época.

A psicanalista avalia que a principal mudança que se viu ao longo dos anos na vida dos pacientes foi a condição de passarem a assumir mais responsabilidades. “Isso fazia com que eles aos olhos deles tomassem mais valor. Um para o outro começava a ter existência, inclusive, porque o coletivo, antes, era um coletivo em que todo mundo é muito igual, todo mundo é tratado igual, todo mundo tem que comer, todo mundo tem que dormir, todo mundo toma remédio, e eles não davam muito valor ao que a pessoa ao seu lado dizia. Era outro paciente e paciente não tem voz”, diz.

Ao irem para os residenciais, eles passam a ter uma casa a da qual tem que cuidar, roupas a escolher e guardar e também passam a cuidar uns dos outros. Com isso, diz Maria Angela, os pacientes começaram a deixar de serem “anônimos” e começaram também a compartilhar mais as suas histórias.

“Começou um processo de viver de forma diferente. Claro que não é assim tirar eles do São Pedro e isso não tira o São Pedro deles, no sentido da identidade deles de paciente de um hospital psiquiátrico. Quando a gente fala da desinstitucionalização, eu acho interessante pensar que a gente fala de uma instituição total, que cuida de tudo, que organiza tudo na vida da pessoa e ela não tem uma voz decisória. Eu estou dizendo isso porque a gente vive de instituições. A escola é uma instituição, a família é uma instituição, um hospital, uma empresa de jornalismo é uma instituição. Todo mundo é institucionalizado de várias formas, a diferença é que tu não depende completamente de uma única instituição”, diz.

Além dos pacientes com maiores condições de ter autonomia, Maria Angela avalia que a mudança para residenciais também permite um cuidado mais singularizado para aqueles que são, por outro lado, mais dependentes. “Mesmo que sejam pessoas acamadas, cadeirantes ou muito dependentes, mas, se elas estão tendo um cuidado mais próximo, é mais interessante do que era quando tinha 50 pessoas dentro de uma unidade para serem cuidadas. Ninguém consegue dar conta de um cuidado tão abrangente para um número tão grande de pessoas. Essa é a proposta da desinstitucionalização na base, é pra que não surjam mais grandes manicômios, que eram locais onde se cuidava em massa”, diz.

 

Foto: Joana Berwanger/Sul21

Simone Paulon conta que, como professora da UFRGS, acompanhou de perto as discussões, durante o governo Olívio Dutra (PT), para a implementação do Morada São Pedro, que é o mais antigo serviço residencial terapêutico em funcionamento a atender antigos internos do hospital. Simone destaca que uma das principais dificuldades encontradas na época foi a escolha do terreno, uma vez que não se achava proprietário disposto a alugar imóveis para o atendimento de pacientes de psiquiatria. No fim, diz, a opção que restou foi a área da então Vila Cachorro Sentado, vizinha do HPSP, o que resultou na proposta de combinar a construção do residencial com o assentamento das famílias em uma nova vila, a Vila São Pedro. Ao final, dividiu-se a área em três ruas, com um lado da rua sempre voltado para a Morada São Pedro e outro para a comunidade.

Contudo, Simone destaca que o projeto começou a sofrer com a falta de financiamento já a partir de 2003, quando Osmar Terra assumiu como secretário de Saúde do governo de Germano Rigotto (MDB). “No dia que o Osmar Terra assumiu, lá em janeiro de 2003, ele mandou tirar todos os trabalhadores, mandou tirar a segurança e eu me lembro que nós fomos lá pra dentro da vila, das moradias, passar a noite. Nós, militantes da luta antimanicomial, fazíamos plantão junto com os moradores que estavam recém aprendendo a ter uma casa. Eles não sabiam fechar a porta, não sabiam usar fogão, usar uma faca”, diz.

Segundo a psicóloga, quem “segurou a onda” do projeto foram os trabalhadores da saúde mental, inclusive para a proteção dos antigos internos do São Pedro, que passaram a viver em uma área que antes era dominada pelo tráfico de drogas. “O pessoal do tráfico descobriu que tinha uns ‘louquinhos’ morando lá com uma casa equipada e passavam dizendo: ‘hoje de noite eu venho buscar a tua televisão, eu venho buscar a tua geladeira’. Aí os trabalhadores passavam a noite lá para sustentar o projeto. De lá para cá, obviamente que a coisa só descambou”, diz.

Ela pontua que o processo de desfinanciamento das políticas de saúde mental se acentuou a partir do governo Temer e destaca que, no governo Bolsonaro, o movimento antimanicomial tem lutado contra uma verdadeira contrarreforma, em que a política para a área passa a ser de priorizar o financiamento de comunidades terapêuticas mantidas por igrejas evangélicas e hospitais privados. O último movimento dessa contrarreforma, segundo Simone, é a Portaria 596/22, do Ministério da Saúde, que revoga o financiamento e incentivos financeiros voltados a estratégias de desinstitucionalização da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), e destina R$ 10 milhões para instituições privadas.

“Neste bojo de horror que estamos vivendo no País, a gente ter uma Secretaria da Saúde que cumpra a lei e execute o processo de desinstitucionalização iniciado na década de 1990 é bom, obviamente que não vou reclamar. O que não dá é a gente jogar confete e bater palma para um movimento que tem 30 anos no Estado”, diz.


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