Geral
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25 de março de 2022
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18:30

Semapi denuncia tentativa de ‘descarte’ de adultos com deficiência por parte do governo do RS

Por
Luís Gomes
luisgomes@sul21.com.br
Adultos com deficiência acolhidos no Abrigo Cônego de Nadal sob responsabilidade da FPE | Foto: Divulgação/FPE
Adultos com deficiência acolhidos no Abrigo Cônego de Nadal sob responsabilidade da FPE | Foto: Divulgação/FPE

O Diário Oficial do Estado (DOE) publicou na última terça-feira (22) um termo de acordo de cooperação técnica firmado pela Secretaria da Igualdade, Cidadania, Direitos Humanos e Assistência Social (SICDHAS) para e elaboração de um contrato de terceirização do serviço de acolhimento de adultos com deficiência que hoje estão sob a responsabilidade da Fundação de Proteção Especial do Rio Grande do Sul (FPE). Contudo, o Semapi, sindicato que representa os trabalhadores da FPE, diz que o Estado não está realizando o processo com transparência e ouvindo conselhos civis e profissionais que atuam na área sobre o processo. Uma tentativa anterior de terceirização do serviço levou a denúncias de maus-tratos e de irregularidades por parte da empresa contratada.

O termo de cooperação firmado com a FPE indica que a fundação deve fornecer elementos técnicos e assessorar e fiscalizar a execução do contrato/convênio/parceria para a prestação do serviço de acolhimento para adultos com deficiência. O documento estabelece um prazo de 12 meses para a cooperação técnica.

Em 2019, o governo estadual já realizou a terceirização dos serviços, mas o processo culminou em decisões judiciais que determinaram a transferência do acolhimento para municípios. Em 18 de setembro daquele ano, a então Secretaria da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos, à época comandada por José Antônio Junior Frozza Paladini, publicou no DOE um termo de dispensa de licitação para a contratação da Clínica Libertad pelo valor de R$ 1,674 milhão para a prestação do serviço de acolhimento 120 pessoas com deficiência e com transtornos mentais. O contrato tinha duração de 180 dias.

As denúncias de irregularidades no atendimento prestado pela Clínica Libertad levaram à abertura de um inquérito civil público pela Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos de Porto Alegre do Ministério Público do Rio Grande do Sul.

Em setembro de 2019, a Promotoria recomendou que o Estado entregasse os 204 acolhidos pela FPE, incluindo os que estavam sob responsabilidade da Clínica Libertad, para as estruturas de acolhimento de Porto Alegre. Recomendou também a recomposição das equipes de servidores da FPE responsáveis pelo acolhimento e atendimento. Além disso, recomendou ao município de Porto Alegre providenciar, por meio da Fundação de Assistência e Cidadania de Porto Alegre (FASC), fonte de custeio para a implantação de Serviços Residenciais Terapêuticos, de Centros de Atenção Psicossocial e Residenciais Inclusivos para o acolhimento da população adulta sob os cuidados da FPE até 30 de dezembro de 2019.

Na ocasião, a promotora Liliana Dreyer da Silva Pastoriz pontuou que a clínica era alvo de denúncias de violações de direitos e do princípio da dignidade humano “em desfavor dos acolhidos praticadas no âmbito de Clínica Libertad, negligência, bem como a incapacidade da equipe técnica da Clínica Libertad para o cuidado da população adulta; a incompatibilidade da Clínica Libertad para o trato da população adulta egressa da FPERGS”.

A Promotoria indicou que a Clínica Libertad estava responsável por abrigar 120 adultos entre pacientes com transtorno mental, com transtorno mental e deficiência física e idosos com transtorno mental e com deficiência física egressos da FPE. Na Recomendação, o MP destaca que a instituição não se enquadrava na natureza de serviços autorizados para funcionamento destinado à assistência à saúde mental no Brasil e que estava operando com alvará inadequado para o serviço prestado. Pontuou ainda que os trabalhadores da empresa não tinha condições de oferecer os cuidados intensivos específicos de cada morador e que havia indícios de que os acolhidos estavam em situação incompatível com sua condição física e mental.

Posteriormente, em janeiro de 2020, a Promotoria encaminhou nova recomendação destacando que o projeto arquitetônico apresentado pela Clínica Libertad para reformas não era adequado para atender às necessidades dos acolhidos e solicitando que a instituição deveria promover, num prazo de 5 dias após o recebimento da notificação, promover adequações necessárias para a continuidade da prestação dos serviços.

Posteriormente, o MP ajuizou uma ação civil pública contra o município de Porto Alegre, a FPE, a FASC e o Estado para obrigá-los a cumprir a legislação no acolhimento a adultos com deficiência. O MP destaca na ação que, durante quatro anos, houveram tratativas sem resultados para que o acolhimento dos adultos abrigados pela FPE fossem transferidos para a responsabilidade da Prefeitura. Informou ainda que vistorias realizadas na Clínica Libertad constataram que a instituição não possuía “condições administrativas, técnicas e profissionais para receber e manter pessoas com as características dos egressos adultos da FPE”.

Com a ação, o MP exigia que os adultos acolhidos pela Clínica Libertad retornassem para os abrigos da FPE e que o o Estado deveria, em um prazo de 12 meses, implantar serviços de residencial terapêutico e serviços de residencial inclusivo para desinstitucionalização dos adultos sob responsabilidade da FPE, que somavam 205 pessoas, 120 das quais sob cuidados da Libertad. A ação também pediu a interdição da clínica e a cassação de seu alvará de saúde.

Em decisão liminar de abril de 2020, a juíza Silvia Murada Fiori, da 4ª Vara da Fazenda Pública do Foro Central da Comarca de Porto Alegre, recusou o pedido de interdição da Clínica, mas determinou que Estado e a FPE tinham um prazo de 60 dias para criar um fluxo de encaminhamentos de adolescentes próximos de atingir a maioridade ou que já tinham completado para seus municípios de origem. Também deu o mesmo prazo para que a Prefeitura de Porto Alegre e a Fasc estabelecessem um fluxo de recebimento de adultos acolhidos pela FPE com origem na Capital e um prazo de 12 meses para a criação e implantação de serviço de residencial terapêutico e dois serviços de residencial inclusivo para a desinstitucionalização dos adolescentes acolhidos na FPE que atingiram a maioridade.

Procurada, a SICDHAS não respondeu aos questionamentos encaminhados pela reportagem. Contudo, o Semapi, sindicato que representa os servidores da FPE, avalia que o termo de compromisso foi lançado porque Estado e municípios não apresentaram alternativas de acolhimento para os adultos abrigados pela FPE.

O Semapi considera ainda que o termo de compromisso indica que o Estado voltará a realizar uma parceria semelhante à firmada com a Clínica Libertad em 2019 e que, novamente, estará descumprindo a legislação que trata do acolhimento à saúde mental e as decisões judiciais que determinam a transferência dos adultos acolhidos pela FPE para a responsabilidade dos municípios. Para o Semapi, trata-se de uma “tentativa do governo do Estado de descartar os acolhidos, de forma autoritária e sem transparência”.

“Estes adultos são acolhidos na Fundação, em sua maioria, desde crianças e não podem, agora, ser tratados como matéria de descarte. A temática é bastante sensível, tanto para os trabalhadores da FPE, como para esses acolhidos e a própria sociedade, mas vem sendo tratada como uma questão meramente econômica, sem a participação dos profissionais que realizam todo o trabalho técnico e social de acolhimento, como se o rompimento dos vínculos humanos decorrentes nada significasse”, diz a diretora colegiada do Semapi e trabalhadora da FPE, Rossana Ramos. “Isso virou um processo econômico e os indivíduos que se ralem”, complementa.

Ramos destaca que o Semapi há dois anos tenta se reunir com a secretária Regina Becker para discutir o tema, mas não obtém retorno. Para ela, as instituições sondadas atualmente para o acolhimento de adultos com deficiência mental e física, assim como a Libertad, não possuem condições adequadas, bom atendimento ou recursos humanos e metodologia adequados para o atendimento dessa população. “A primeira questão é que o Estado não está seguindo nem um pouco o que diz a legislação da questão da saúde mental”, diz.

A preocupação do Semapi é que, em 2019, a empresa Clínica Libertad foi contratada mesmo sem possuir um espaço voltado para o acolhimento de pessoas com deficiência antes do processo de contratação ser iniciado. “O nome Clínica Libertá existia, mas a clínica em si, o local onde está a parte física, não existia”. Ela diz ainda que os profissionais contratados pela Libertad não tinham experiência na área, o que gerou uma alta de rotatividade de trabalhadores. “Eles queriam até o auxílio dos sindicatos, porque tinha muita rotatividade. Os profissionais ficavam um mês e saiam e o sindicato, desde 2019, recebendo muitas denúncias anônimas, até de trabalhadores que estavam na clínica e observavam irregularidades, de maus-tratos em relação à vestimenta, em relação à alimentação, em relação a excesso de medicação.”

A Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa realiza na próxima quarta-feira (30), às 9h30, uma audiência pública para debater a situação dos acolhidos pela FPE, proposta pela deputada estadual Sofia Cavedon (PT).


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