Geral
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5 de outubro de 2021
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06:45

Bairros de maior renda são os mais beneficiados pela suspensão dos reajustes do IPTU; veja mapa

Por
Luís Gomes
luisgomes@sul21.com.br
Cidade se transformou em três décadas, mas valorização de imóveis não era capturada pelo IPTU | Foto: Maia Rubim/Sul21
Cidade se transformou em três décadas, mas valorização de imóveis não era capturada pelo IPTU | Foto: Maia Rubim/Sul21

Em 10 de setembro, o prefeito Sebastião Melo (MDB) concretizou uma de suas principais promessas de campanha: sancionou a lei que suspendeu os pagamentos do reajuste de IPTU que deveriam ser aplicados entre 2022 e 2026. Segundo a Prefeitura, a medida tem como objetivo ajudar a estimular a retomada econômica da cidade. Contudo, na prática, ela beneficia moradores e proprietários de imóveis comerciais que apresentavam a maior defasagem entre o valor real do imóvel e o que era estimado pela Prefeitura. Um mapa elaborado a pedido da reportagem do Sul21 aponta que as regiões com o maior número de imóveis beneficiados são justamente aquelas mais ricas da cidade.

O IPTU é cobrado de acordo com o valor de um imóvel conforme previsto na Planta Genérica de Valores (PGV). Em 2019, durante o governo de Nelson Marchezan Júnior (PSDB), a planta foi atualizada pela primeira vez desde 1992. Isto é, durante os 27 anos, a Prefeitura cobrou o IPTU ignorando a valorização imobiliária que ocorreu em várias regiões da cidade.

Para aprovar a lei, Marchezan negociou com a Câmara o parcelamento dos reajustes. No primeiro ano de entrada em vigor, em 2020, o aumento do imposto não poderia passar de 30%. Entre 2021 e 2025, não poderia passar de 20%. Caso algum imóvel ainda tivesse se valorizado acima dos percentuais aplicados, o excesso deveria ser incluído integralmente na cobrança de 2026. Com a suspensão dos reajustes, na prática, todos os imóveis que se valorizaram até 50% com a atualização da PGV já quitaram todos os reajustes devidos, enquanto aqueles que estavam mais defasados ainda tinham uma ou mais parcelas a pagar.

Segundo a Secretaria Municipal da Fazenda (SMF), Porto Alegre tem atualmente 646.136 imóveis residenciais com inscrições imobiliárias. Desses, 364.873 tiveram algum nível de reajuste do IPTU após a aprovação da lei de 2019, o que representa 56,47% do total.

Dos 364.873 imóveis que tiveram algum reajuste, 265.769 (41,13% do total de imóveis registrados da cidade) já haviam recebido todos os reajustes previstos na lei de 2019 e 99.104 imóveis residenciais (15,43% do total) ainda deveriam passar por um ou mais reajustes nos próximos anos.

A Prefeitura justifica o cancelamento com o argumento de que o incremento de IPTU atingiria principalmente imóveis comerciais e que, por já terem sido “fortemente afetados pela pandemia”, a medida faz parte do plano de recuperação econômica da cidade. Além disso, segundo dados da SMF, 79,21% dos imóveis beneficiados pela suspensão teriam valor venal inferior a R$ 500 mil, o que foi usado pela Prefeitura para argumentar que a suspensão não beneficia os mais ricos da cidade.

Contudo, segundo os mesmos dados da SMF, é possível verificar que menos de 30% dos imóveis que se beneficiaram com a suspensão estão nas duas faixas de menor valor de venda. Apenas 2.964 dos imóveis (2,17% do total) que ainda teriam reajustes de IPTU a pagar a partir de 2022 estão na faixa de zero a R$ 100.000,00. Outros 35.254, ou 25,79%, estão na faixa dos R$ 100.000,01 a R$ 200.000,00.

Por outro lado, 12% dos imóveis estão nas duas faixas mais altas. Os dados indicam que 5.442 (3,98%) das matrículas beneficiadas pela suspensão têm valor venal entre R$ 750.000,01 e R$ 1 milhão, enquanto 10.632 (7,78%) têm valor acima de R$ 1 milhão.

Em nota encaminhada à reportagem, a SMF argumenta ainda que imóveis comerciais teriam tido o IPTU reajustado, em média, em 92,17%, enquanto os imóveis residenciais subiram, pela lei de 2019, 36,7%, em média. “Esses imóveis estão localizados em todas as áreas da cidade e, no geral, apresentam valores venais mais baixo”, diz.

Auditora fiscal da Receita municipal aposentada, a arquiteta Néia Uzon destaca, contudo, que o valor de um imóvel conforme a PGV é, na verdade, apenas um percentual do seu valor real. Segundo ela, a planta revisada em 2019 trabalha com 60% do valor real dos imóveis. “Então, quando se diz que o congelamento atinge imóveis de valores inferiores a R$ 500.000,00 de valor venal, significa que são imóveis de até R$ 833.333,33 em valor de comercialização”, diz Néia, que foi responsável pelo grupo de trabalho que coordenou a revisão do PGV em 1992.

Néia Uzon argumenta ainda que, quando a Prefeitura diz que os imóveis não residenciais tiveram os maiores aumentos, isso significa que eles eram os maiores beneficiados pela defasagem na planta e os 92,17% de incremento significam que pagavam metade do que seria devido.

Na prática, todas as regiões da cidade tiveram algum imóvel valorizado pela suspensão do reajuste do IPTU, alguns bairros concentram uma quantidade mais expressiva de beneficiados, pois estão localizados em áreas que se valorizaram ao longo do tempo e não tiveram a contrapartida de adequação tributária.

O mapa (ver abaixo) aponta que os bairros em vermelho são aqueles com a maior defasagem média de cobrança de IPTU, enquanto os bairros em verde são aqueles em que o valor estava mais próximo da atual PGV ou ainda acima do valor correto.

Mapa mostra as regiões com o maior número de imóveis beneficiados pela suspensão do reajuste

Entre os bairros identificados em vermelho, estão: Vila Assunção, Vila Conceição, Sétimo Céu, Menino Deus, Bela Vista, Independência, Moinhos de Vento, Rio Branco, Três Figueiras, Chácara das Pedras, Anchieta, Costa e Silva. Pelo mapa, fica claro que os bairros considerados de classes média e alta de regiões centralizadas da cidade apresentavam a maior defasagem entre o IPTU pago e a valorização do imóvel nas últimas três décadas. Por outro lado, moradores e comerciantes de bairros periféricos, como Restinga, Sarandi, Lomba do Pinheiro, entre outros, pagavam um valor do IPTU abaixo, equivalente ou próximo do valor dos imóveis (compare o mapa acima com a lista de bairros de Porto Alegre).

De acordo com outro mapa elaborado pelo ObservaPOA (abaixo), os bairros que tiveram a maior parte dos beneficiados pela suspensão do IPTU são aqueles que concentram as parcelas com maior renda da cidade conforme o Censo do IBGE de 2010. O Censo daquele ano apontou que a renda média dos responsáveis pelos domicílios nas regiões Centro, Noroeste e Sul era de 5,24 vezes maior do que nas regiões mais pobres da cidade, o que inclui a Restinga, a Lomba do Pinheiro, o Sarandi e o Mário Quintana.

Gráfico elaborado pelo ObservaPOA a partir de dados do Censo de 2010 | Foto: Reprodução

“Moradores de áreas muito valorizadas que, por conta da defasagem da planta de valores, pagam IPTUs baixos. Para dar exemplos, se a gente for pensar transformações recentes da nossa cidade, toda aquela região ao lado do shopping Iguatemi. Aquilo lá, há 15, 20 anos atrás, tinha uma característica muito diferente. Na planta de valores que vigorava antes, estava relacionada à situação passada, que era de uma zona alagadiça, com comunidades informais, portanto, tinha IPTU baixo. Da mesma forma, aquela região do final da Ipiranga, do Central Parque, passou por transformações recentes em que se implantaram empreendimentos de médio e alto padrão para camadas mais abastadas da população. Essas zonas se tornaram valorizadas, o valor dos imóveis se transformou, mas a planta de valores da Prefeitura não acompanhou isso”, avalia Pedro Araújo, diretor do Sindicato dos Arquitetos do RS (Saergs).

Pelas contas da Prefeitura, o cancelamento do reajuste previsto para 2022 vai gerar uma redução na arrecadação prevista estimada em R$ 47,3 milhões. A Secretaria Municipal da Fazenda diz que as perdas serão compensadas com medidas de ampliação da arrecadação que não sejam o incremento da carga tributária.

A pasta destaca que, nos últimos quatro meses, aumentou a arrecadação em R$ 23 milhões com a autorregularização ISS. Também cita a previsão de arrecadar mais de R$ 40 milhões com as solicitações já feitas para adesão ao programa RecuperaPOA, que concede descontos de até 90% nas multas por atrasos para regularização de impostos municipais. Além disso, afirma que a Prefeitura irá trabalhar “fortemente na redução de despesas”.

Para o período entre 2023 e 2026, a SMF diz que não haverá impacto, porque a expectativa de receitas já foi ajustada para não prever o ingresso dos reajustes do IPTU.

Para o arquiteto Pedro Araújo, a suspensão dos aumentos do IPTU é uma medida ao mesmo tempo coerente e contraditória com a gestão Melo até aqui. “Contraditória porque ele abre mão de receitas, sendo que, recentemente, ele fez reformas atacando a aposentadoria dos servidores alegando crise financeira”, diz. “Agora, todas as iniciativas dele têm sido na direção da favorecer os já favorecidos, os grandes empresários, as classes mais abastadas da cidade. Todas as reformas e as transformações que ele tem feito, seja no transporte público, seja na gestão mesmo, têm ido na direção de favorecer esses segmentos. Quem sai perdendo é a cidade como um todo, que vai perder uma receita muito importante que poderia ser revertida em políticas públicas para a cidade”.

Por outro lado, ele pondera que a legislação do governo Marchezan já apresentava problemas com relação ao combate às desigualdades sociais e tributárias, uma vez que deu isenção de IPTU para terrenos que não estavam sendo utilizados, quando uma forma de promover a função social de uma propriedade, o que está previsto no Estatuto das Cidades e na Constituição, é justamente aumentar de forma progressiva a cobrança do IPTU sobre imóveis não utilizados.

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