Entrevistas
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11 de março de 2018
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11:34

‘O Brasil chorou, mas o Brasil virou a página’, diz autora de livro sobre tragédia da boate Kiss

Por
Sul 21
sul21@sul21.com.br
Homenagens às 242 vítimas do incêndio da boate Kiss na Praça Saldanha Marinho, pela data de um ano da tragédia. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Homenagens às 242 vítimas do incêndio da boate Kiss na Praça Saldanha Marinho, pela data de um ano da tragédia. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Por Fernanda Canofre

A primeira vez que a jornalista Daniela Arbex pisou em Santa Maria, foi num domingo à meia-noite. Na hora, ela se perguntou o que estava fazendo ali. No dia seguinte, seguiu em frente para encontrar pessoalmente as pessoas que havia contatado pelas redes sociais. Pais, sobreviventes, pessoas que de alguma maneira viveram o incêndio que marcou a cidade na noite de 27 de janeiro de 2013. Uma tragédia que terminou com 242 pessoas mortas.

“Eu cheguei sem julgamento. O fato de vir de um lugar distante, me ajudou a estar aberta para tudo. Mas eu tive receio também. Você tem que quebrar muitas resistências, inclusive, a sua própria”, conta ela.

Dois anos de entrevistas e cinco viagens à cidade gaúcha na bagagem resultaram no livro “Todo dia a mesma noite”, lançado no início do ano. Nele, Daniela conversa com pais, sobreviventes, trabalhadores das equipes de resgate e da área da saúde. Muitos deles, nunca haviam falado sobre a dor que testemunharam.

Repórter premiada do jornal Tribuna de Minas, conhecida especialmente pelo livro “Holocausto Brasileiro”, Daniela conversou com o Sul21 sobre a decisão da justiça gaúcha que rejeitou júri popular aos réus e o que espera ver de memória sobre uma das maiores tragédias do país:

Sul21: Na semana passada, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul negou o pedido do Ministério Público para que os réus fossem a júri popular. O que tu achaste desta decisão?

Daniela Arbex: Eu acho que essa decisão reflete o atual momento do Brasil, que é uma Justiça que não corresponde aos anseios do cidadão brasileiro. Uma Justiça que não consegue fazer, efetivamente, justiça. Infelizmente, esse resultado é a cara do Brasil de hoje, em tudo o que a gente sonha em mudar. A gente não pode mais não se sentir representados pelas instituições. Isso é muito perigoso e compromete a própria democracia. Eu acho que meu livro traz esse grito para que possa haver mudanças, não só sobre o caso Kiss, mas em relação a nossa forma de olhar para a dor do outro.

Sul21: A tragédia da Kiss completou cinco anos, agora em janeiro, com punições apenas na Justiça Militar, que depois ainda acabaram sendo reduzidas. Tu achas que isso é do ritmo “normal” do Judiciário ou esse caso está em risco de cair mesmo no esquecimento?

Daniela: Infelizmente, a morosidade da Justiça é uma realidade do país. Essa semana eu fiz uma reportagem sobre uma comunidade, que há dez anos teve suas casas demolidas. Não estamos falando de uma comunidade pobre, eram todas casas de classe média. Houve uma movimentação anormal de terras e as casas começaram a rachar, a prefeitura prometeu indenizar as pessoas e demoliu todas, mas até hoje ninguém recebeu nada. Pessoas que viveram 50, 60 anos nessas casas. Infelizmente, há uma morosidade da Justiça. E volto a dizer: é isso uma das coisas que faz com que a gente desacredite que a Justiça vai acontecer e que faz com que as pessoas continuem agindo irregularmente, porque elas não se sentirão punidas. Então, posso agir livremente, posso não cumprir as leis. No Brasil, posso matar uma vez, porque se eu não for preso em flagrante, vou responder ao processo em liberdade. São críticas que eu não faço feliz, mas para as quais a gente precisa se atentar. A morosidade alimenta a impunidade.

Livro de Daniela Arbex sobre a tragédia da boate Kiss. Foto: Editora Instrínseca/Divulgação

Sul21: O que te levou a escrever sobre o caso da boate Kiss?

Daniela: Eu fui meio que convocada para escrever essa história. Jamais pensaria, eu, Daniela, em escolher contar a história da Kiss. Não porque não fosse uma história importante, mas porque geograficamente estava muito distante de mim e do meu estado (Minas Gerais). Em 2016, um colega radialista, Marcos Moreno, que trabalhava no mesmo grupo de comunicação, me procurou porque tinha conhecido pelo Facebook uma enfermeira de Santa Maria e que eu precisava contar essa história. Naquele momento, eu disse pra ele: “Mas, Moreno… Primeiro, que todo mundo já contou essa história. Segundo, Santa Maria fica do outro lado do mundo”. Ele, que é um cara muito gozador e tal, ficou muito sério, olhou nos meus olhos e disse: “Quem não está entendendo é você, você tem que contar essa história”. Isso mexeu tanto comigo que eu fiquei pensando. Fiquei curiosa, resolvi procurar as famílias nas redes sociais e ver como elas estavam vivendo. Eu comecei a ver que elas não se sentiam representadas e me apresentei para várias delas, explicando sobre o livro. A primeira mãe que me respondeu disse: “Que bom, porque a gente precisa ser ouvido”. Fui para Santa Maria e te confesso que, a primeira vez que desembarquei lá, num domingo à meia-noite, eu pensei “meu Deus, o que estou fazendo aqui?!”. Foi muito forte. Mas, na primeira entrevista entendi que tinham coisas que precisavam ser faladas, histórias que não tinham sido contadas e mergulhei de cabeça nesse trabalho por dois anos.

Sul21: Logo que aconteceu a tragédia, houve uma super cobertura nacional e nos jornais locais, de vários dias, sobre o que aconteceu e histórias de vítimas e familiares. O que faltou contar?

Daniela: Numa cobertura de uma tragédia como essa, é tudo tão intenso, tudo acontece tão rápido, que falta tempo para olhar, para enxergar, para ouvir o outro. Quando eu ofereci minha escuta, acabei encontrando histórias de devastação tão impactantes, que eu percebi que essas histórias mostravam o efeito da falta de justiça na vida dessas famílias. Mais do que isso, percebi conversando, entrevistando, que os profissionais da saúde nunca tinham falado sobre o que viveram naqueles dias. Nem entre eles. Quando comecei a ouvi-los, nas entrevistas coletivas, eles começam a dialogar, a chorar. Histórias como a da mãe que tentou se matar depois de perder a filha e tentou matar a filha que sobreviveu. Histórias como o médico que estava de plantão no Hospital Universitário de Santa Maria e, de repente, entra pela porta o filho dele com o pulmão todo queimado. Ele estava no plantão, estava recebendo as vítimas e foi informado que o filho, que tinha plantão naquela noite, porque era acadêmico de Medicina, estava entre as vítimas. Ele não pode ser pai, teve que ser médico. Histórias do acordar de pessoas que saíram do coma, do recomeçar, de quem sobreviveu e teve todo o drama de sair da Kiss. É um livro de afeto. Acho que o Marcelo Canellas (repórter da TV Globo), que escreveu o prefácio, foi muito feliz com essa fala. É um livro de sentimento, de dor, que denuncia a impunidade, mas através do sentimento. Ele nos revira do avesso. Foi assim que me senti da primeira vez que ouvi essas histórias.

Sul21: Como foi a produção dele? Qual foi teu processo para trabalhar essas entrevistas?

Daniela Arbex. Foto: Editora Instrínseca/Divulgação

Daniela: Fiquei dois anos indo para Santa Maria. Nunca me passaria pela cabeça contar uma história tão recente. Eu sou uma contadora de histórias e uma pessoa que tem se dedicado à construção de memória, então, volto muito no passado. Isso não aconteceu (dessa vez), porque era uma história recentíssima e que tem mais de 400 mil citações na internet. Ao mesmo tempo, depois, me senti ousada de falar em “história não contada”, porque poderia parecer meio pretensioso. Eu lidei o tempo todo no limite de tudo. No limite da minha emoção como ser humano, porque não dá para deixar isso em casa e dizer “agora você é jornalista”. Eu estava ali inteira como mãe, como mulher. Foi a primeira vez que uma escuta me afetou dessa forma, a ponto de eu precisar de ajuda especializada. Eu nunca tinha procurado ajuda em terapia, precisei. Para você ter uma ideia, fisicamente, engordei 8 kg escrevendo o livro. Comecei a ter medo de perder meu filho, meu marido, foi um processo muito duro. Mas, ao mesmo tempo, muito grandioso. Primeiro porque você se renova como pessoa, segundo, que eu me senti muito privilegiada. Eu precisei construir uma relação de confiança com essas famílias que foram muito expostas e ficaram [receosas]. Imagina, uma mineira chegar com uma ideia de fazer um livro. Isso era surreal para eles. Eu acabei construindo uma relação de confiança, para que eles pudessem me contar. Isso não acaba assim com “tchau, estou indo embora”. Eu entrei nas vidas deles e eles entraram na minha, sabe? E de uma forma muito profunda.

Sul21: Muitas das histórias da Kiss foram contadas e recontadas em vários meios, de várias maneiras, se criou uma rede de solidariedade com pais e sobreviventes. Mas, teve outro lado, de conflitos com a prefeitura de Santa Maria da época, com MP, que também os colocou em posição de batalha constante.

Daniela: Entre os pais e a população também. O que percebo é que o livro trouxe uma compreensão desse luto que não existia antes. Se você vê as mensagens que eu tenho recebido, que os pais têm recebido, de leitores do país inteiro, é muito emocionante. Um pai de São Paulo, que se chama Paulo, me escreveu dizendo: cada mensagem que a gente recebe de alguém que leu o livro (ele fala “nosso livro” e ele está certo) é como se braços invisíveis nos abraçassem. É uma coisa tão poderosa e é uma compreensão. Eu também acho que os pais vão entender melhor a cidade. Quando você não sabe o que dizer diante do luto do outro, pode parecer indiferença. Você se afasta por não saber lidar, porque é muito difícil lidar com a dor do outro. É inimaginável o que eles passaram, mas esse afastamento soa como indiferença. Na verdade, pode ser só uma forma de se proteger. Eles estão muito expostos no livro, porque eles estão ali por inteiro, no que eles têm de melhor e nas fragilidades. O livro não tem heróis, tem seres humanos. Ele escancara nossa humanidade. Tem uma mãe que fala: “eu disse pra minha filha que ela não seria esquecida”.

Sul21: Existe um projeto agora para criar um Memorial para Vítimas e Sobreviventes da Kiss, para que não se esqueça dessa história. Teu livro também vem para isso?

Daniela: O livro é um memorial de palavras. O Memorial que vai ser erguido de tijolos vai dar significado para aquele lugar. Não vai existir para falar de morte, mas de amores, de vida. O livro também tem esse papel, de ajudar nessa luta, pela construção da memória, que também é uma forma de se buscar justiça. O Brasil chorou, mas o Brasil virou a página. Essa é uma característica nossa. A Lei Kiss nasceu toda retalhada, com 12 vetos do presidente Michel Temer (MDB). Para nós, de Minas Gerais, [o livro] nos aproximou desse evento, porque a gente olhava como “aquela tragédia do Sul”. Ela não é uma tragédia do Sul, é uma tragédia do Brasil, de todos nós. Tem um médico de Santa Cruz do Sul que me escreveu e disse assim, “passei a ter saudade dos meus pais”, “passei a entender meu papel de filho, de cidadão”. Olha só. Isso é muito especial. É isso que faz com que tudo que a gente passa – e o que eu passei não é nada perto do que eles terão que passar a vida inteira, por ter perdido um filho – é o que faz todo o esforço valer a pena.


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