Entrevistas
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21 de abril de 2014
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12:37

“O teatro de rua é uma cartografia da nossa condição de vida”, diz Alexandre Vargas, criador do Festival de Teatro de Rua de Porto Alegre

Por
Sul 21
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 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Alexandre Vargas, ator, diretor e produtor cultural, que há 24 anos trabalha com teatro: “A rua é imprevisível” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Roberta Fofonka

Ator de rua, diretor, fundador do grupo teatral Falos & Stercus (1991), e do C.P.T.A. – Centro de Pesquisa do Trabalho do Ator (2003), Alexandre Vargas é idealizador do Festival Internacional de Teatro de Rua de Porto Alegre, que ocorre na capital até o dia 29 de abril, este ano na 6ª edição.

Numa conversa realizada em meio às últimas costuras da organização do evento em plena véspera de feriado, ele contou ao Sul21 sobre sua trajetória e percepção do trabalho artístico na rua. além dos preparativos para o festival. Ele cita que, como coordenador e diretor artístico do evento, os elementos da organização de um festival deste porte convergem a uma base conceitual que vai além do entretenimento. “Não se trata de se montar uma grade qualquer de programação, mas gerar pensamento.” Segundo ele, a rua é melhor espelho para se perceber as diferenças e segregações da sociedade, coisa que o palco muito pouco proporciona. “No palco italiano, o público está lá para ouvir o que eu vou falar, raramente ele vai se manifestar, e ele é muito formatado dentro destes espaços, ou seja, gostando ou não dos espetáculos, a maioria vai aplaudir, talvez de pé.” O que, conforme conta, não é o caso da rua. A rua, tecnicamente, é de todos. E nela, estão todos expostos. 

“Tu vês o conservadorismo na rua, tem gente que xinga, que diz que tu tens que ir trabalhar e não percebe que isso é trabalho”

 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Na rua, há uma comunicação mais horizontal com o público” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Como tu começaste no teatro de rua?
Vargas – Eu trabalho há 24 anos com teatro. Nos anos 90, havia um anseio muito grande de ir para as ruas. É importante lembrar que em 1985 tivemos as Diretas Já, toda uma vontade de poder escolher teu presidente, uma movimentação muito forte nas ruas e, especificamente em Porto Alegre, em 1989, a gente teria o primeiro governo petista. Então, esse governo fez uma série de ações que privilegiaram este movimento de ir para as ruas, é ali que nasce a descentralização e uma série de problemas culturais que acabam dialogando com as ruas. E isso fez com que houvesse um movimento significativo do teatro de rua aqui em Porto Alegre, em relação aos outros estados do país. A década de 1990 é uma década onde se produziu bastante. Final dos anos 1990 e início de 2000, há um certo enfraquecimento desta produção. Eu tenho uma opinião sobre isso, no sentido estético mesmo, que nos anos 90 ainda se produzia com um olhar muito ainda na questão da ditadura. Depois tem a abertura democrática, e isso vai trazer certos problemas, digamos assim, de como isso refletia esteticamente nos trabalhos de teatro de rua.

Sul21 – Como é a experiência de estar na rua, algo que não é nem de longe um palco. Qual é o diferencial?
Vargas – Primeiro que, quando tu estás na rua, cada rua é específica. Então tu vês muito bem as diferenças culturais, educacionais e econômicas. O público, no centro de Porto Alegre, tem um perfil. Ele está apressado, está indo para o trabalho, para casa, o sujeito trabalhou 8h por dia e está numa fila de ônibus, não se deslocou até ali para ver uma apresentação. E o centro de Porto Alegre tem muito ruído, os carros, o religioso que quer vender a sua palavra de Deus, o político que vai para a esquina. A praça é uma praça grega, tem muitas coisas acontecendo ali. Quando tu te deslocas dali e vai para uma vila, um bairro, esse povo tem a sua característica própria, e vai reagir diferente. Se tu fores no Morro da Cruz, por exemplo, e fizer a apresentação na Rua A, talvez o pessoal da Rua B não vá na rua A, então tu tens que ir na rua B. Na rua, tu consegues ver muito bem a separação e a segregação que a sociedade tem.

Sul21 – É uma espécie de retrato mais fiel?
Vargas – Sim. É uma cartografia da nossa condição social, da nossa condição de vida. Quando tu te apresentas no Brique da Redenção, há outro perfil de público. Tem o público que vai naquele dia para ver as apresentações, o que está ali por lazer, em determinado horário estão famílias, tudo isso influencia. A Av. Osvaldo Aranha nos anos 90, por exemplo, pela manhã tinham idosos circulando, à tarde eram os estudantes e, à noite, tinham os punks. Então quer dizer, num mesmo local, horários diferentes, públicos diferentes. A rua é imprevisível. E ainda pode chover, tu está mais ligado com esta coisa que não é constante, que é desequilibrada, essa coisa da natureza. Então não há determinadas seguranças, o público pode se manifestar. Tem quem goste da peça, tem quem não. Entra o bêbado, entra o morador de rua, porque em tese essas ruas são as ruas deles. Tu vês o conservadorismo na rua, tem gente que xinga, que diz que tu tem que ir trabalhar e não percebe que isso é trabalho.

“Se botar um espetáculo aqui, não quer dizer a cidade vá dialogar com o teatro. Mas, se botar no Parque da Redenção, é outra coisa”

Sul21 – E o que a rua te proporciona como artista?
Vargas – Eu diria que na rua, há uma comunicação mais horizontal com o público. Já no palco italiano, tu tens uma questão de hierarquia e alguns limites. Dependendo do palco onde tu te apresentas, já tem um público específico. Uma apresentação no São Pedro vai ter um perfil de público, uma no Teatro do Sesc vai ter outro, uma apresentação no Teatro Renascença vai ter outro. Já é uma espécie de recorte da sociedade. E a comunicação, no palco, se dá numa via muito mais vertical, o público está lá para ouvir o que eu vou falar, raramente ele vai se manifestar, e ele é muito formatado dentro destes espaços, ou seja, gostando ou não dos espetáculos, a maioria vai aplaudir, talvez de pé. Vai atuar muito mais dentro das convenções.

Sul21 – E já ocorreu alguma manifestação do público contigo, por exemplo? Algo inusitado?
Vargas – Ah, sim. Várias coisas. Em 1995, eu fiz uma apresentação em Vigário Geral (RJ), um período bem crítico no país. Em 1993 teve a chacina da Candelária, depois a chacina de Vigário Geral. Nós apresentamos dentro da favela de Vigário Geral, com autorização dos traficantes, eles ali limpando as armas e nós entrando para a apresentação. É uma situação inusitada no ponto de eu me deparar com aquela realidade, que eu só conhecia dos jornais. Tu vês a relação do traficante com a comunidade, um cara que criou um campo, que fez um cinema, que atende a população em coisas que o estado não atende. Então me deparei com isso que a gente vive, a gente conhece, mas não sente.

 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Gênese do Festival é o grupo teatral fundado em 1991, ‘Falos & Stercus’ | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Às vezes há reações reacionárias, alguém se ofende, às vezes nem a pessoa percebe, mas algum dispositivo do espetáculo desperta algum elemento da moral dela e ela acaba se manifestando a partir disso. O mais bacana é poder perceber estas diferenças todas e ver que a gente não é igual. Uma vez também, num exercício, no meio dos hippies que ficavam na Rua dos Andradas, de repente um hippie faz um comentário: “Ah, estão tudo drogados”. Isso quando vem deste hippie, mostra como ele mesmo é careta. Por que afinal, não, era só um exercício de teatro feito na rua. Mais nada.

Sul21 – Tu mencionaste a apresentação de Vigário Geral. O quanto tu já rodaste com o teatro de rua?
Vargas – Bem, eu fundei o grupo Falos & Stercus em 1991, eu e outros integrantes. Então, a partir daí a gente rodou muito, no Rio, São Paulo, Londres, Buenos Aires. Aqui dentro de Porto Alegre em muitos bairros. Então o Festival vem um pouco desta minha origem.

Sul21 – Sobre esta edição do Festival Internacional de Teatro de Rua de Porto Alegre, o que há de novo?
Vargas – A edição deste ano tem um recorte conceitual pensado muito nas manifestações de junho e julho, isso em função também de uma demanda de produção, ou seja, daquilo que se apresentou nas inscrições. Vários espetáculos têm a característica de ser itinerantes, e muitos deles têm um discurso de reivindicação, que foi o que a gente viu nas ruas.

O festival foi pensado em quatro eixos: um eixo de apresentações, que é o teatro de rua, performances e intervenções urbanas; um eixo formativo, com intercâmbios, workshops e oficinas; e um eixo de reflexão, com seminários, conferências e debates. Este ano temos a presença do Peter Pál Pelbart, filósofo reconhecido que vai falar no Largo Glênio Peres, ou seja, não dentro de um espaço fechado. E é uma reflexão sobre o que aconteceu em junho, é uma palestra dele intitulada Eu Não sou Ninguém. Esta frase que ele viu em uma manifestação em São Paulo, e vai refletir sobre ser singular, nesse momento do Brasil em que ser singular é uma coisa que incomoda os partidos, os sindicatos, as religiões, mas é algo que ele identifica muito nestas passeatas que estão acontecendo. Quando as pessoas dizem que “tu não me representa”, ele vê ali um espaço de singularidade e uma singularidade que incomoda determinadas estruturas.

Depois temos um eixo de atividades especiais, em que a gente tenta preservar a imagem de alguma artista reconhecido, que é uma homenagem ao artista de rua Caio Gomes, poeta popular. E a rodada de negócios, que é a presença de produtores nacionais e internacionais aqui em Porto Alegre, para receber a produção local e depois distribuir daqui para outros países e outros estados. É um movimento que vai além. Todos estes eixos se interligam num sentido conceitual para expandirem-se. Não se trata de se montar uma grade qualquer de programação ou entretenimento, mas gerar pensamento. E o Festival é um evento pensado para a cidade, não para algum nicho específico.

“Eu acho que a Lei dos Artistas de Rua  pode dar um sentimento de tranqüilidade. Se isso é real ou não, é outra coisa”

Sul21 – Em que momento da tua vida e da cidade que se deu a criação do Festival?
Vargas – Primeiro, nasceu o desejo de um olhar relação à produção alta nos anos 1990, a queda nos anos 2000, e também um desejo de fazer a questão do teatro se enraizar mais na cidade. As vontades são muitas, desde o deslocamento da geografia cênica, que se reconfigurou na cidade. Botar um espetáculo aqui, não quer dizer que a cidade vá dialogar com o teatro. Mas, se botar no Parque da Redenção, é outra coisa.

Sul21 – Hoje quais são estes espaços em Porto Alegre?
Vargas – Hoje, se tu fores pra ver toda a movimentação que está acontecendo, desde piquenique na Redenção, comida na rua, a rua que é fechada para fazer evento de música, luz na Redenção, desde a ocupação da frente da prefeitura e o próprio Largo Glênio Peres, estes são muitos espaços demandados hoje. Mesmo que acompanhados de apelo por uma estrutura melhor, um serviço público melhor, são estes espaços que me parecem que estão sendo reivindicados, e que são ocupados de uma forma muito diferente hoje, que é com estas expressões, muitas delas expressões de comunhão.

Sul21 – Então qual é o momento do teatro de rua na cidade hoje?
Vargas – Hoje há muitas manifestações de arte acontecendo na rua. Eu acho que os artistas estão levando as suas idiossincrasias através dos seus espetáculos para a rua e o tipo de produção e discussão do espetáculo é uma reflexão muito atual, de um país um pouco mais estruturado, muito mais consciente, e que por isso começa a demandar outras necessidades. Eu acho que tem uma variação muito grande de intencionalidades, mas muito forte mesmo este espírito de comunhão. É uma reivindicação muito pessoal.

 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Tem discriminação sim. Em geral, não há o entendimento da arte de rua como um ofício” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – E agora estamos num momento logo após a aprovação da Lei dos Artistas de Rua em Porto Alegre. O que ela de fato contribui para o trabalho artístico?
Vargas – Eu acho que a lei pode dar um sentimento de tranquilidade. Se isso é real ou não, é outra coisa. O fato é que no país todo, há muitas capitais que hoje estão loteando espaços públicos e cobrando pelo uso, e isso vem impactando um tipo de produção que não está preparado para isso. Muitos grupos passaram a ter que pedir licença, a ter que serem cadastrados em algum órgão, para usar os espaços. Como hoje, com tudo conectado, a gente fica sabendo aqui o que acontece com o artista de rua do Piauí, essa lei que foi aprovada é uma válvula de escape. Ela tranquiliza um pouco quem está aqui. Mas isso não vai inibir determinados cerceamentos. Por exemplo, na Praça da Alfândega não pode apresentar espetáculos. Isso é um decreto da prefeitura, isso está lá, simplesmente não pode apresentar. Mas a gente tem que estar atento, temos que acompanhar esta nova lei, ver se ela vinga.

Sul21 – Dentro da classe artística, há algum tipo de discriminação com o ator de rua?
Vargas – Tem preconceito, sim. Não é uma questão só da classe. Muitas vezes é considerado uma arte menor, que está e deve permanecer à margem. Uma coisa muito fundamental é que, nos anos 90 havia na raiz da criação de determinados grupos, um desejo de mudança. Quase que querer mudar o país, mas dizer para as pessoas “Nós temos um maneira de viver que pode ser útil pra ti”. Isso mudou muito, hoje não é assim. Hoje não é este o desejo principal. Tu tens corredores culturais em que os artistas produzem e criam os espetáculos. Vários grupos se unem porque querem criar um modelo de produção, e ele nem sempre está de acordo com o modelo oficial, então, por isso, acabam ficando à margem. Esteticamente, tem coisas que são mal feitas mesmo, mal acabadas, assim como pode acontecer num palco. Mas tem discriminação sim. Em geral, não há o entendimento desta arte como um ofício. Na França, por exemplo, fora o cinema, o segundo movimento maior de arte é a arte de rua. São mais de 320 festivais pelo país.

 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Para Vargas, estética atual do teatro de rua está “amadurecida” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

“Eu não vejo outra maneira de evolução sem que as pessoas estejam mais cientes dos seus espaços”

Sul21 – E, conhecendo na prática, como é o ganho de um ator de rua?
Vargas – Primeiramente, tem muitos artistas de rua, e a gente teria que tentar decifrar o que é, pois há muitas variedades. Mas, tem gente que vive só do chapéu, tem gente que vive de editais públicos, e basicamente disso. Hoje tem grupos com patrocínios, são raros, mas existem. Às vezes algumas instituições compram um espetáculo e tu consegues circular um pouquinho mais pelo país, também.

Sul21 – E qual é o teu sentimento que te move?
Vargas – O meu desejo principal é tentar gerar pensamento. E refletir sobre a cidade e a nossa relação com este espaço de convivência. Vai ser muito difícil de a gente avançar socialmente se não houver espaços de sociabilidades possíveis. Eu não vejo outra maneira de a gente evoluir sem que as pessoas estejam mais cientes dos seus espaços.

Sul21 – Qual dramaturgia específica voltada para o teatro de rua tu destacaria?
Vargas – Tem vários, tem o Teatro Tascabile di Bergamo, o próprio Odin Teatret, o Living Theatre, que teve uma influência muito grande nas ruas aqui no Brasil nos anos 1970 também, o Generik Vapeur, que é um grupo que vai estar aqui em Porto Alegre no Festival, que é um dos grupos mais importantes de teatro de rua no mundo. Vamos ter a presença de um catalão chamado Roger Bernat, que consegue através de sua obra botar em cheque todo um movimento de participação popular dos anos 90 para frente, ele consegue dizer “Não se iluda que não é bem assim”. Estes para mim são alguns muito importantes.

Sul21 – Então dá para dizer que a arte de rua anda junto com o momento político?
Vargas – Muito. Se pegar a cena paulista de rua, é extremamente política. Mas tem um eixo que está se transformando. Não é que ela deixe de ser política, mas existe um eixo de elaboração estética que vem se aprimorando na construção dos espetáculos. E é isso que eu vejo que acontece hoje, este tipo de produção estética mais amadurecida, depois deste período de abertura democrática.


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